terça-feira, maio 29, 2007

Sonho...

Era apenas uma menina. Com uns sete ou oito anos. Cabelos castanhos encaracolados nas pontas, olhos vivos e boca fina. Muito quieta. Sempre preferia ouvir a falar, o que a fazia uma boa companhia para quase todos.

Adorava quando a noite chegava pois sabia que poderia assim ficar sozinha sem parecer estranha. Nunca teve problemas de dormir sozinha e no escuro. Sempre ansiava por esse momento durante todo o tempo.

Naquele dia, não foi diferente. Conforme as horas foram passando, ela foi se aquietando e sonhando com a sua cama quente, seu quarto protegido do mundo. Quando a mãe chegou e a mandou escovar os dentes para dormir, um leve sorisso apareceu nos seus lábios finos. Foi ao banheiro, escovou os dentes e permaneceu imóvel, como se experimentando o prazer que antecede o adormecer.

Deitou na cama fria. Nesses meses de inverno, era sempre assim. Mas até daquilo ela gostava. Esquentou os pés um no outro até sentir a quentura. Parou e lembrou de rezar. Falou a frase pequena que a mãe a ensinara. Não quis o Pai Nosso nem a Ave Maria. Preferiu a do anjo protetor ou guardador, não sabia ao certo.

Fechou os olhos, pôs a mão no peito e quando percebeu viu ao seu lado uma mesa como a de um almoço. A família inteira reunida, muito barulho, todos tentando se servir ao mesmo tempo. Tentou abrir novamente os olhos para afastar aquela imagem. Não conseguiu.

Foi a primeira noite em que sonhou exatamente com aquele ambiente que tanto tentava fugir. A partir daí, passou a sempre temer pela hora de dormir. Tinha a impressão de que na verdade, era quase a mesma maneira de existir. Passou a pedir - antes de dormir - para que não tivesse sonhos. Duvidou e resolveu nem insistir.

domingo, maio 20, 2007

Oração por Clarice Lispector

"...Ela sabia que ia tentar rezar e assustava-se. Como se o que fosse pedir a si mesma e ao Deus precisasse de muito cuidado: porque o que pedisse, nisso seria atendida. Foi à geladeira, bebeu um copo de água: agia como se tivesse sido hipnotizada por Ulisses. E ainda um ínfimo movimento de revolta contra o hipnotismo a que parecia ter sido sujeita fazia-a adiar o que viesse.
Pedir? Como é que se pede? E o que se pede?
Pede-se a vida?
Pede-se a vida.
Mas já não se está tendo vida?
Existe uma mais real.
O que é real?
E ela não sabia como responder. Às cegas teria que pedir. Mas ela queria que, se fosse às cegas, pelo menos entendesse o que pedisse. Ela sabia que não devia pedir o impossível: a resposta não se pede. A grande resposta não nos era dada. É perigoso mexer com a grande resposta. Ela preferia pedir humilde, e não à sua altura que era enorme: Lóri sentia que era um enorme ser humano. E que devia tomar cuidado. Ou não devia? A vida inteira tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor.
Não, não devia pedir mais vida. Por enquanto era perigoso. Ajoelhou-se trêmula junto da cama pois era assim que se rezava e disse baixo, severo, triste, gaguejando sua prece com um pouco de pudor: alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para que eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que eu durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém..." (Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres).

terça-feira, maio 08, 2007

sensações...

tô quase sentindo a morte... morte de quem nunca viveu a vida, sabe??? daquela vida guardada e limpa como vestido branco de dama de honra... mas não sei... se é morte ou vida... suada e puída... nem sei se quero continuar a andar com os olhos e braços abertos... sem ter que olhar a sua cara de fome... sai daqui... não quero mais fome nem frio... quero apenas ser... sem precisar ser, sabe como é??? sabe não, né??? mas eu quero... deixa vai...