sexta-feira, junho 22, 2007

Nascer da Coragem...

Desconexo. A única palavra que habitava o seu existir. Ele sentou no computador e a cada movimento mais se sentia desconexo. Livre, solto, selvagem, maldito. Ela ainda na cama, fingiu acordar e andou até ele. Pôs os braços no seu pescoço. Lábios tocaram aquela parte da nuca que sempre arrepia. Bicho limpo e claro. Olhou para trás. Ofereceu também os lábios. O beijo veio como uma invasão. Língua querendo além de sentir, ferir, ofender. Ela sentiu o amargor. Olhou séria para ele. Baixou os olhos tentando entender. Ele pôs a mão na nuca dela. Afagou a pele quente do calor do travesseiro. Olhos vazando. Ela lambeu a água dos olhos dele e num repente de coragem, resolveu se entregar. E não era com o corpo que o fazia. Pegou singelamente a sua mão e a pôs no seu ventre. Que já sentia a vida que ali nascia...

domingo, junho 17, 2007

Raiva de Pensamento...

Sentia raiva. Profunda como uma mágoa. É tão estranho sentí-la - pensou - achando que poderia estar sonhando. Mas via os seus olhos abertos. Talvez apenas encobertos. Ouviu a chave na porta e percebeu que ele tinha voltado. Quem será que está mais bravo, pensou baixo, com medo dele ouvir até mesmo isso. Fecho os olhos e fingiu dormir. Mas a luz acesa e o livro deixado às pressas ao lado, a confessava. Mas ele, não sei porque, não me condena - ela ainda pensou. Não está mais bravo, pensou quando ele colocou a sua mão no seu ombro. Talvez nunca tenha estado, pensou mais uma vez, dessa bem rápido, pensamento quase como uma flecha sem tempo de acertar o alvo. Demorou para se mexer, queria que ele insistisse no contato. Aí toda a raiva se apodera dela e pensa mais uma vez que têm todo direito de sentí-la. Devo ter - pensa-, afinal ela é só minha. Ele suspira. Sente que agora, adivinha o seu pensamento. Sai do quarto. Liga a tevê e o computador ao mesmo tempo. Têm febre de contato... a ser continuado

segunda-feira, junho 11, 2007

Caio Fernando por Lya Luft

Uma grande amiga, sabedora da minha admiração pelo Caio Fernando Abreu, me deixou de presente na porta da minha casa, uma crônica da escritora Lya Luft sobre ele que foi publicada na revista Veja no aniversário da sua morte... Aí vai...
"Caio, amado amigo
Não preciso falar do escritor tocado de genialidade, justamente celebrado nestes dez anos de sua morte. Falo do amado amigo, quase um irmão mais novo. Era estranha aquela amizade nossa... ou deverei dizer "é", no presente?
Caio Fernando Abreu nasceu um dia depois de mim, exatamente dez anos mais tarde. Eu era casada com um ilustre professor universitário e pesquisador, tranquila mãe de tres filhos; Caio, grande alma inquieta, era um andarilho misto de príncipe e alternativo. Ouvi falar dele muitas vezes antes de o conhecer. Guilhermino Cesar, crítico severo e erudito, disse-me dele: "Escritor não nasce pronto, mas Caio Fernando é uma exceção: aos 20 anos produz um texto em que nada há para melhorar".

Conheci Caio em minha casa, em Porto Alegre, onde me visitou com meu amigo Luciano Alabarse, diretor de teatro, que havia pedido: "Quero levar seu romance Reunião de Família ao palco, e só há uma pessoa capaz de adaptar esse livro: Caio Fernando"
Alguma coisa em pessoas tão incongruentes como Caio e eu transcendeu todas as diferenças, e imediatamente nos tratamos como irmãos. Demos muitas risadas, falamos coisas loucas e profundas e engraçadas, nos comovemos às lágrimas, e naturalmente dei minha autorização. A adaptação de Caio foi magnífica, a peça, montada, foi um sucesso, e a partir dali acho que passei a entender melhor meus personagens, com seus labirintos e dramas existenciais, agora vistos em carne e ossso.
Nossa amizade estava decretada. Ficamos em contato. Carta, telefonema ou raro encontro eram simples continuação de um diálogo nunca interrompido. De São Paulo ou Amsterdã, ele me escrevia, com assiduidade ou em longos intervalos. Algumas vezes relatava suas lutas e dificuldades, momentos bons ou pobreza e solidão. Em outras ocasiões, com um pouco daquele seu humor tão peculiar, escrevia: "Ando casto e em paz. Rego minhas plantas, escrevo cartas, faço poemas. Pareço uma recatada velha dama inglesa".
De mim, dizia com muita graça: "A Lya, com aqueles cândidos olhos azuis e jeito de mãezona, não tem idéia do que escreve, tanto mistério e dor. Aquilo deve ser tudo psicografado".
Quando ele adoeceu, li seu artigo revelando sua condição, num dos mais admiráveis testemunhos de humanidade e coragem que conheci neste mundo hipócrita. Perto do seu fim, tivemos duas experiências de amizade destinada. Numa dela, jantávamos juntos, num restaurante discreto perto da casa dele. Caio de repente segurou a minha mão por algum tempo, depois disse: "Eu sempre vivi como quem quer se matar. Agora que sei que vou morrer... como eu amo a vida!". Nada melodramático, nenhuma autopiedade, apenas dolorida constatação.
Quando ele já estava definitivamente no hospital, quase não recebendo visitas, eu tinha notícias constantes através de amigos ainda mais chegados, como Graça Medeiros. Um dia ele quis me falar, então telefonei. A voz de Caio, inconfundível, era quase a mesma. Falamos duas, três banalidades, e então ele perguntou, direto: "Lya, o que você acha que vai acontecer comigo quando eu me libertar desse corpo?"
Seria indigno dizer algo falsamente consolador a alguém como Caio: nem ele nem nossa amizade nem o momento mereciam isso. Respondi, na maior simplicidade, aquilo que acredito: "Acho que, livre desse corpo, você vai ser pura intuição, e enxergar num deslumbramento tudo isso que passamos a vida procurando entender, e sobre o que escrevemos tanto".
Ele fez um silêncio breve e voltou à carga, num misto de angústia e carinhosa provocação: "E se não for assim?".
Assumi o mesmo tom:"Ah, meu querido, se não for assim, nós dois vamos virar uns diabos bem perversos, e vir fazer toda a sorte de malandragem neste mundo!".
Sua risada soou no fio do telefone, linda, clara, forte como nos tempos de saúde. Foi o nosso último contato: ele morreu dias depois.
Mas está comigo, como outros seres amados que se foram sem realmente partir".

segunda-feira, junho 04, 2007

Livro do Desassossego por Fernando Pessoa

"De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anônima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.

Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas idéias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o ator, mas os gestos dele.

Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.

Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites de minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com a consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.

Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.

É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontra numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença até a consciência - , e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.

Foi um momento e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os atos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demônio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da monada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.

Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir"