terça-feira, julho 31, 2007

ensaio

golpe de cena. luz. montagem. voragem do meu amor. sem coragem. entro e saio sem dizer nada. olho e choro apenas. penas para todos os gostos. úmido e poroso encosto da cadeira. cabeça para trás, mãos para cima, coração deixando de bater. manso, pacífico, sem fazer barulho. Nocivo. Mãos no chão, cabeça ao lado. Parece descaso. Descanso ou acaso ? Ainda não sei. Talvez nunca o saiba. Neste momento é somente o meu eu e o seu que estão dentro. Casa. Perdida casa.

segunda-feira, julho 30, 2007

O que sinto na gestação do poema? por Adélia Prado

O que sinto na gestação do poema? Aponta o lápis que já te digo: que bom se não desse diabetes na minha família, se a doença de Chagas parasse de matar meu povo. A tia não tem, o tio tem, a prima tem, o primo também, a avô, a avó, o irmão tem. Que bom se não desse cáries. O mal de Parkinson ensinou nós todos a dançar. Minha infeliz tia, que em solteira foi, por oito vezes consecutivas, presidente das Filhas de Maria, peleja para comprar uma portinha que vende pão, pirulito e guaraná divinópolis, pro filho dela tomar conta, porque ele não pode com serviço pesado. Ela tem doze mil que sobrou do lote que ela vendeu por trinta, mas a diaba da dona do boteco só vende a espelunca por vinte e cinco, a exploradeira. O meu filho adorado saiu de casa para estudar na escola "Seu saber é pra vencer". Escola parece guerra. Deixava ele em casa, se pudesse. Que bom seu eu tivesse a saúde pra um fogão de lenha. Levantava cedo e acordava os meus homens: ôi gente, café tá esperando, ninguém vai para a roça hoje não? Levanta Francisco, levanta José, Antônio levanta, Rosa e Maria ficam pra torrar a farinha. O dia cheio, a noite com o crescente no céu, a cafeteira no canto do fogão. No pasto tem cobras, mas no céu tem São Brás e na guarda de cada um o Santo Anjo do Senhor. Eu queria a saia rodada até no pé, eu bonita, mesmo com o cabelo branqueando, a vaidade da prender ele num coque amarrado num lenço de seda para amaciar e proteger da poeira. Sou patronesse da festa de caridade. No meio do jantar eles dizem o meu nome, vou lá na frente com uma etiqueta no peito. Batem palmas pra mim e se estabelece entre nós uma aversão tão grande, o pus da festa se forma, ameaçando a entornar. Aproveito que estou no palco e começo: a verdadeira caridade... Mas então eles põem o som altíssimo e sorteiam os brindes. Sou a primeira e melhor premiada. Batem mais palmas pra mim. Senhor, senhor, porque me abandonaste? O que vai ser de nós? Do meu particular destino? Dos filhos que eu gerei? Visito um por um nas suas camas: Deus te abençoe, Deus te abençoe, volte para ti o Seu rosto, proteja-se contra a escola, a filantropia, o vírus, contra meu triste e errado amor. Vinga o pinto no ovo, vingam as sete crias da cadela ganindo na poeira. Por que não vingará o que Cristo remiu, o que a água do Batismo e seu Sal e seu Óleo prometeram preservar? Meu óvulo cariado trasnmite com precisão a doença ancestral. Os nosso filhos iam ser perfeitos. De asséptico amálgama antecipamos seus cabelos de seda. Reveladores do seu puro sangue iam ser os seus dentes. Que houve então? Este espanto não se pode esconder, não é mesmo? Olha-os dormindo: lábios e pálpebras mal fechados mostram a pupila atingida, o dente partido em diagonal, o leve tremor do que, no sono, insiste nas palavras do seu sonho. Legados com equanimidade os apodrecimentos de nossos pais. Mais que a asma atávica, o medo. Mais que o medo, a palavra cruel que ainda não vão aprender; a forma bruta de olhar. Em culpa, não saber e até com alegria os geramos, os que iam ser deuses. Acaso os desvelamos? Ou existir é que assim irreparável? Por eles nosso amor e a pele do nosso rosto se confrangem, principalmente quando dormem, vulneráveis como homens. Amor eu disse. Não é este o nome do que nunca desiste de soprar uma forma sobre o barro? Galharda, olímpica, passo à frente, esquecida, entre suspiros e cantar d'amores, seu fogo infátuo, o pecado original. Pelo reino deste mundo meu coração suspira, pela saudável beleza, pela longa vida, meus filhos, rebentos de oliveira, ao redor da minha mesa. Não fiz o mundo mas tenho que carregá-lo. Que bom se eu só pudesse gozar. Por uma parte respondo, da outra e maior Deus cuida. Pode-se rezar contra a peste, a fome, a guerra, lutar gota a gota contra o invisível inimigo, na carne, nos corredores da alma, pondo tropeços no amor. Você dá o remédio a seu doente, a gota pinga na barba e cristaliza-se, o sol bate nela, ela rebrilha e seu coração reflui de uma não tristeza, alegria sem guizos, paciência. A ovelha pronta para o sacrifício, ela sabe balir, ela sabe falar, ela escreve, vai parir o poema, começar tudo outra vez. (Solte os Cachorros - Editora Siciliano)

domingo, julho 22, 2007

a esperar ...

é para você que escrevo. leve e aveludado como um enredo. te imagino correndo no verde, pulando no azul e dormindo no rosa. acordando no branco com as mãos sujas de cores frias mas nunca mortas. contar a história do tempo que parou para descansar, sair de fino para não chorar. fazer você dormir com a minha mão gelada e fina. encontrar com a sua sorte no meio da minha não-morte. somente vida. entrar na roda sem mãos e sem cantos. estender os braços somente para os acalantos. ouvir a tua voz baixa e rouca repetindo as palavras que sussuro sem saber. querido meu, porque você não vêm viver?

domingo, julho 15, 2007

Receita

vozes graves. melodramas. sim para a carne. não para o drama. voar até onde a brisa incorpora. o corpo e a sua amora. sintomáticos calafrios. calados pavios. tenho vontade. logo ela passa. quero te ver antes de conhecer. acompanhar teus passos e teu hálito antes do acaso. sentir a vida nua para assim sentar na calçada. pés juntos e mãos aladas. frio na espinha e coração em polvorosa. desconfio de tudo e depois é a simples demora. rosas brancas e velas amarelas. espelho cristalino encoberto de poeira. desmanchar o plácido desatino e te sentir dentro. inteira. meramente entrecortada pelo teu sangue e a tua veia. fugir para sempre para ver se despenteia. encontrar a tua cara de fome e me desmanchar em lua cheia.

sexta-feira, julho 13, 2007

LIS NO PEITO por Jorge Miguel Marinho

Marco César me contou e eu sinceramente acredito. Não há por que não acreditar. Explico melhor: durante muito tempo, por alguma razão esse rapaz não conseguiu ver o rosto de Clarice, no fundo mesmo não quis. Eu por mim acho mesmo que ele não queria se ver diante dela e se satisfazia com as costas da menina que insinuavam o melhor rosto para a imaginação. Não é que tivesse medo de que ela fosse feia, mas talvez o que Clarice revelasse pela frente não fosse tão bom.

Marco César tinha pavor de se decepcionar como eu já disse a você, e certamente desviara o olhar dos olhos dela como um gesto natural de se guardar. Ele estava apaixonado por ela desde aquele primeiro instante em que tinha escutado a sua voz. Isso significa que Marco César amou Clarice pelas costas e se sentiu feliz em permanecer imóvel, sozinho e calado dentro da paixão. Por um tempo, é claro, um tempo até mesmo longo, mas viveu a alegria de amar a distância e tocar as partes mais guardadas de um corpo com a persistência e a intuição de quem olha e cristaliza instantâneos, flashes, flagrantes distraídos da vida para atender aos apelos da imaginação.

Gostava dos cabelos dela caindo até o meio das costas, cabelos quase crespos, quase loiros, quase bonitos se não fossem duas presilhas tão opressivas que pareciam estar ali para aprisionar um vôo. Tudo em Clarice era o impulso para um vôo como se ela fosse um pássaro todo livre dentro de uma gaiola ideal. Tenho a impressão de que ele até usou essas mesmas palavras quando me confessou o seu amor por uma menina sem rosto, porém não tenho certeza, e pouco importa aqui de onde vêm as palavras – essa história não é minha. De qualquer jeito Clarice precisava de pouco espaço para viver – com o tempo eu também percebi.

Ela era alta, magra em toda a estatura, provavelmente de seios muito pequenos e tímidos que Marco César chegou a ver de perfil uma vez ou outra quando ela se virava e ele no mesmo instante desviava o olhar. Esse meu amigo era mestre na arte de adiar.

Engraçada que a magreza de Clarice excitava Marco César, sobretudo a musculatura da perna e a cintura minúscula que contrastavam com uma ligeira redondeza das nádegas parecendo uma porção de carne a mais. Ele imaginava abraçar aquela carência de formas cobrindo Clarice na grama com seu corpo virgem e um volume de carnes que era o bastante para os dois. Não me contou, mas deve ter imaginado esse encontro na solidão do seu quarto, dentro do ar censurado dos banheiros, na sombra meio clandestina e silenciosa dos jardins, na excitação proibida das paredes e dos azulejos que projetam corpos nus e impossíveis que sentimos tocar.

Ele deve ter imaginado sim e até mesmo sentido a ilusão da sua pele se entregando à pele dela, até o dia em que o encontro de um rosto com o outro de fato aconteceu.

Foi na escola, debaixo de uma amoreira esquecida que pelo nome deve ter ficado com as folhas mais abertas para esperar o encontro de uma pessoa com a outra e fazer muita sombra para os jogos do amor.

Ele foi chegando de um lado com a cabeça baixa, olhando sem olhar direito o caminho dos pés. Ela veio vindo do outro lado com os olhos olhando e querendo ver se era sinal de chuva aquela nuvem escura num pedaço do céu. Marco César tinha o hábito de olhar os pés se movendo, tentando descobrir o que fazia ele mexer as pernas sem caminhar para um destino certo. Clarice gostava de pensar na água que vinha do céu ou corria na terra, sentindo que ela fazia parte de um mundo morno e líquido, às vezes chegava a transpirar nas partes mais íntimas, ficava meio molhada por dentro e por fora e não era difícil sentir um fio de suor descendo pelas costas mesmo nos dias de frio. Estranho que ele andava sempre para algum lugar, apenas andando por andar. No caso de Clarice, o engraçado é que ela não sabia nadar.

Como eu disse, na escola havia uma árvore solitária que ficava na extremidade direita de quem entra. Era uma amoreira que só era lembrada quando se abria de amoras que brotavam vermelhas como se a plenitude palpável da beleza fosse um estado de rubor. Muita coisa estava predestinada a acontecer debaixo dela e, se você passar lá por perto, vai ver que ela ainda continua solitária no mesmo lugar.

Marco César e Clarice iam sempre sozinhos buscar alguma coisa que se busca e não se sabe muito bem o que é debaixo de uma amoreira. Sentavam num banco de cimento coberto de pedras rústicas e ficavam esperando acontecer alguma coisa que não acontecia. Nunca tinham se encontrado antes porque a gente não antecipa um encontro com hora marcada debaixo de uma amoreira e o amor só acontece quando tem que acontecer. Como nunca acontecia nada, e isso era para ele e para ela uma ausência quase boa, no mínimo uma sensação de paz e liberdade, por ficarem livremente sozinhos mesmos sem querer – por mais uma artimanha do destino, os dois preenchiam esse vazio calmo da vida com o canto de um pássaro que sempre aparecia por lá. Marco César achava que era uma sanhaço, Clarice não se preocupava com a espécie dos seres vivos ou mortos mas, se perguntassem, responderia que era um bem-te-vi pela harmonia desse nome com o que ela sentia ouvindo e tentando imaginar de olhos fechados as cores de um pássaro que nunca se mostrava direito e nunca se deixava ver do jeito que ele devia ser.

Nesse dia o pássaro já estava lá meio escondido, e eles, chegando involuntariamente juntos, se falaram tentando ver primeiro o pássaro e esse primeiro diálogo aconteceu mais ou menos assim:

- É um sanhaço, não é?

- É nada, olha como é um bem-te-vi.

Ele olhou para ela e achou bom e até macio se sentir olhado por ela. Ela, que não se incomodava de ser vista por fora ou por dentro, sem querer, de repente respondeu uma pergunta que ele não chegou a fazer:

- Esse pássaro não deve ser só um pássaro, esse pássaro é um vôo. Presta atenção para você ver se não é.

Ele olhou para dentro de alguma coisa boa, morna e molhada nela e respondeu para a alegria que crescia dentro dele vendo e sentindo a existência tão próxima de uma linda mulher:

- É!

Marco César e Clarice falaram pouco e se olharam muito – e tudo pareceu que devia ser assim porque, dentro daquele quase silêncio, os dois sentiram que um brincava com o outro e essa brincadeira apenas insinuada era o modo mais exato de se encontrarem. Mais do que isso: os dois experimentavam juntos, um ao lado do outro, uma deliciosa algazarra interior.

A amoreira e o pássaro, cada qual seguindo a sua natureza e a sua função, permaneceram quietos, quase imóveis para não perderem os ruídos e os movimentos de uma brincadeira séria que já havia começado fazia tempo e nenhum ganhava do outro. Por acaso ou não e para o bem ou para o mal, esse encontro parecia um jogo de esconde-esconde, e quem entrasse no jogo só podia encontrar o amor.

fonte: Lis no Peito: um livro que pede perdão(p. 68 à p. 73). São Paulo: Biruta, 2005

domingo, julho 08, 2007

Se encanta?

O encantamento é raro e breve.
Não dura mais que um instante.
Errante e fugidio.
Claro e inconstante.
Quando você o toca,
Ele se transforma em borboleta
Parte
Vai onde não conhecem encanto.
Resplandece suas cores no teu acalanto.
Mistura-se ao pranto no recanto,
Breve, grave e raro.
Quase, quase um canto...

terça-feira, julho 03, 2007

ASAS E AZARES por Paulo Leminsky

Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
Estava todo ao meu lado
E o que se chama passado,
Passatempo, pesadelo,
Só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
Quando tive que escolher
Entre um abismo, o começo,
E essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
Meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi.