quinta-feira, novembro 29, 2007

Eu vou te dar alegria...

Alegria
Arnaldo Antunes

Eu vou te dar alegria
Eu vou parar de chorar
Eu vou raiar o novo dia
Eu vou sair do fundo do mar
Eu vou sair da beira do abismo
E dançar e dançar e dançar
A tristeza é uma forma de egoísmo
Eu vou te dar eu vou te dar eu vou
Hoje tem goiabada
Hoje tem marmelada
Hoje tem palhaçada
O circo chegou
Hoje tem batucada
Hoje tem gargalhada
Riso e risada
Do meu amor

domingo, novembro 25, 2007

Passarinho

Agora o amor tinha virado outra coisa. Quase nada misturado com tristeza e um pouco de poesia morta. Foi num repente que ele se foi e deixou um vazio gelado ventando no seu coração. De tudo ficou a delicadeza como desejo, a leveza como procedimento e a alegria como meta. Clara imagem do contorno da memória, agora enterrada e sepultada, ávida por aquilo que a vida insistia em lhe dar - a esperança e preêmencia de um novo amor. Ou simplesmente uma amora. Que soava como uma segunda pele encantada. Sensação de pertencer desmesurada. Loucura pisada com pés na lama da estrada. Continuou a andar, o coração sorvia lágrimas e da sua boca saía um cântico das almas antigas. A andarilha havia retornado. Era para isso que tinha nascido e continuaria a procurar. Mesmo que o encanto fosse breve e doce. Mesmo que nele seus pés cortassem a voz e ela simplesmente se calasse. Continuaria como num conto de criança, a esperar a gentileza da dávida do encontro. Até desmanchar seu corpo, virar um pássaro livre e seu canto...

quarta-feira, novembro 14, 2007

Trecho de Apenas uma Maçã do Caio Fernando Abreu

...nascendo das minhas pupilas, círculos dourados se estendem até o infinito. A maçã ofega em cima da mesa. A primeira percepção é um grito de luz sobre o branco, a presença da maçã, contornos imprecisos contra a janela. Os círculos ampliados concentricamente contém átomos de poeira em passeio pela manhã. É manhã? Não sei: é silêncio apenas. Fecho os olhos. Somente a memória fala: porque é certo que as pessoas estão sempre crescendo e se modificando, mas estando próximas uma vai adequando o seu crescimento e a sua modificação ao crescimento e a sua modificação da outra; mas estando distantes, uma cresce e se modifica num sentido e outra noutro completamente diferente, distraídas que ficam da necessidade de continuarem as mesmas uma para a outra. O corpo ao lado, vestido, e o movimento que pressinto da recusa. Mas ela não fala. Apenas olha. As pupilas cheias de pequenos pontos dourados. Pontos de fogo, de ouro, de luz. Pontos de: não...