sexta-feira, abril 14, 2006

para começar o papo...

Sempre adorei escrever. Na infância tinha um pequeno caderno onde anotava meus primeiros versos. Uma das minhas maiores inspirações nesta época foi o cometa halley. Escrevi tanto sobre ele, o idealizei, me preparei para conhecê-lo que a minha frustação foi enorme quando ele apareceu tímido... quase sumido na sua cauda meio suja e inaparente...

Depois passei muito tempo sem conseguir escrever mais que alguns pequenos trechos de textos... poemas pequenos... mas a escrita voltou assim como foi... no momento em que me defrontei com uma imagem que me paralisou... o rio são francisco... portanto aí vai o texto de quando reiniciei a escrever...

" Reflexões sobre o Rio São Francisco

Agora que nos afastamos definitivamente dele, me sinto mais inteira para falar. E para isso é preciso contar desde o início. Há um ano e meio atrás me invadiu a vontade de fazer a viagem pelo Rio São Francisco, conhecer desde a sua nascente em Minas Gerais até a sua foz em Alagoas, passando pela Bahia e Pernambuco. Nunca tinha lido nada a respeito e comecei a fazer pesquisas tímidas e montar o roteiro na minha mente. Era uma mistura de desejo, ensaio, curiosidade, vontade, sensação de encontrar verdades, tantos sentimentos misturados e confusos que impediam uma definição mais apropriada do que "chamamento".

Viagem sempre adiada pelo trabalho, naquele momento cada vez mais tenso junto aos meninos e meninas com fome, não só de amor e de justiça, mas fome de barriga vazia, fome de palavras amigas, fome de saber quem são e para que servem as suas vidas. Com tanta fome, a fome de conhecer o Velho Chico ficou guardada, mas nunca esquecida, apenas suspensa, um pouco congelada.

Afastei-me daquela fome, ela continua no meu caminho, eu bem o sei, mas agora meu trabalho é dar de comer de outras formas, outros jeitos.

De repente, a oportunidade de ouro, dez dias de férias com uma querida amiga, incerteza de planos, até que me veio claro, ele, de novo, me chamando, aquele mesmo sentimento sem forma, sem identidade... Tudo muito rápido. Dois dias de programações, passagens compradas, de certeza tínhamos apenas duas coisas: o ponto de partida - a cidade de Pirapora – MG no dia 10/12/2005 e a volta marcada de Salvador em 22/12/2005. O resto era apenas nuances, idéias, vontades, desejos.



Primeiro veio a cidade invisível e chuvosa - Pirapora - MG, onde só se via nas ruas homens de todas as idades, crianças e mulheres mais velhas, não sei se pela própria idade, ou pela vida sofrida de mulheres de todas as cidades, aparentemente nesta mais dolorida e de coragem. Ônibus sem horários certos de partida, e onde não se compra passagem antecipada, é realmente como se fosse no meio do nada.

Pergunto sobre navegação no rio, a resposta é curta. Não existe mais, faz tempo, nem sei o quanto de verdade, disseram-me, sem nenhuma vontade, logo que lá cheguei.

Meu primeiro encontro com ele, foi nesta cidade chuvosa, quase escurecendo, sua água barrenta fluindo sem cessar, parecendo até não se importar com a chuva, com a sensação de esquecimento e abandono que a visão me causa. Esquecimento de um grande valente que percorre quatro estado brasileiros e parece estar ficando invisível, indivisível. Com a noite caída, o azul do céu pareceu estar refletido na água do rio, que continuou a fluir sem cessar, correr, sem nem parecer se preocupar.

Nesta cidade, o rio barrento mostrou a sua valentia nas corredeiras e nós mostramos as nossas atravessando uma ponte esburacada apenas para vê-lo do outro lado, outro ângulo. Cidade das carrancas, onde os homens fazem da arte de talhar a madeira - profissão de artesão – ao desenharem réplicas das imagens que antes eram usadas pelas embarcações para afastar os maus espíritos. Homens que ao talhar as caras feias e dentes grandes, exprimem terem a vontade de traçarem as suas próprias vidas, seus próprios destinos, desejam recuperar o tempo já perdido, quando as carrancas eram efetivamente utilizadas no rio e não simplesmente consideradas apenas como peça de artesanato.

Sem hora certa para partir, demoramos um dia inteiro para ir para Bom Jesus da Lapa -BA, terceira cidade do roteiro originário, pois Januária-MG foi descartada pela chuva que não cessava.



Vinte e quatro horas depois, Bom Jesus da Lapa, mistura de fé pura com o total descomprometimento ambiental. A gruta onde reside a figura milagrosa do Bom Jesus emociona e nos faz crer na fé do homem simples que leva o retrato, cópia do membro curado e atribui tudo ao Bom Jesus, mas o rio colado à gruta grita pelo descaso, com muito lixo, bem ao lado da fonte de São João Batista que possui a inscrição: "Uma voz clama pelo deserto, preparai o caminho do senhor e endireitai suas veredas".

Como ali era o último lugar em que iríamos vê-lo, fomos à sua margem, sentamos, e ficamos contemplando. De repente, uma senhora de um lado a lavar a roupa, do outro três homens pescando e cantando cantigas que pareciam candomblé, ou simples sincretismo, não sei. Músicas bonitas e que combinavam perfeitamente com a paisagem, o rio tranqüilo a fluir como se dizesse estar feliz com a música, com os acompanhantes, com o vento e com as nuvens. Assim, de tão perto, a impressão é que o rio é mesmo um menino sonolento que depois de tanto brincar, de tanto fluir e de tanto sonhar, apenas busca o aconchego daqueles que dele se aproximam sem interesse. Assim como nós, apenas para o olhar.

Como despedida, um passeio de barco até uma ilha próxima, onde os que lá vivem migram conforme a cheia ou vazante do rio. Naquele dia, a cheia tinha levado embora metade da plantação dos moradores. Vegetações lindas, cheias de vida, várias flores diferentes, pequeninas e com cores próprias. Parecia outro mundo: junto à gruta o rio humilhado, sujo, desprotegido e alguns minutos dali, ele exuberante, como a exibir a sua ilha verde e cheia de vida.

Durante o passeio de barco, observando atentamente as suas águas, suas margens, as casas solitárias com as canoas em frente, invadiu-me um sentimento misto de alegria e agonia. Alegria por estar li, desfrutar daquela paisagem sem igual, que até mesmo as palavras ficam poucas para explicar e não é por causa da beleza e sim pela força de resistência do rio e de seus moradores e agonia por perceber o estado de abandono e esquecimento dos dois.



O rio parecendo um menino tentando ser protegido pela vegetação que o abraça e o embala, mas não impede a sua degradação. Visão que mostra a miséria do nosso país, que não é só miséria de fome, é miséria de respeito, miséria de conhecimento, miséria que deprime e que parece não ter nome nem resposta. Miséria pura de dor pungente por perceber que o abandono não é só o do rio, mas também da gente que ali está. Ambos maltratados, quase invisíveis, mas que permanecem de forma valente resistindo todas as agressões, todo o esquecimento que é a verdadeira causa da miséria do povo que acaba por contribuir com a miséria do rio, nele jogando todas as suas próprias sujeiras.

Fico a pensar e de repente, me vem uma idéia que parece foi suspirada por ele mesmo nos meus ouvidos. Ele diz que a única resposta é prosseguir apesar de todas as agressões, permanecer, resistir, com a beleza possível, com a poesia intraduzível e com a fome de justiça que talvez não seja deste mundo.

Querido Chico, agradeço por ter te conhecido, mesmo que pouco, muito me ensinastes. Fluir sem cessar, sem importar quanta sujeira te joguem, matar a sede e a fome daqueles que te agridem sem nem mesmo saber. Tu tens o meu amor e o meu respeito, mostrando sempre valentia, altivez, imponência e porque não beleza, já que apesar do barro, tu é que matas a fome. Não importa donde ela venha ou como ela seja, tu ofereces o prato cheio, sem perguntar, nem cobrar nada. Apenas chora, em alguns momentos, quando as tuas águas invadem plantações e casas, mas calma, querido rio, tu já mostraste a tua importância e magnitude. Não te preocupes, apenas segue fluindo, levando tua mensagem de fartura e saciedade aqueles que ainda procuram dentro de si o que os consome.

Agora, entendo porque somente à soja é permitido navegar em você agora. Pessoas só podem vê-lo, senti-lo assim, de forma furtiva e rápida, talvez para não serem contagiadas pela sua valentia e resistência e levá-las para as suas cidades, para os seus rios, para as suas próprias fomes, para as suas vidas.

3 Comentários:

Blogger Comida Honesta (e Desonesta) disse...

Eu que já havia saboreado suas palavras me encantei com a publicização!!!

beijos

Let

3:34 AM  
Blogger Comida Honesta (e Desonesta) disse...

Tati,

reconfigure seu blog, pois como está apenas bloggers podem postar comentários...

Let

3:35 AM  
Anonymous Anônimo disse...

Reclamei que não conseguia comentar ... mas agora percebo que não tenho muito a ser dito diante de tantas palavras lindas que vc escreve ! Acho que só tenho mesmo é que te dar os parabéns pelos textos e pelo novo blog !!!!
Se a Bruna Surfistinha deu no que deu (e como deu!).... imagina um blog bem escrito onde não pode chegar ! Boa sorte, querida !

12:36 PM  

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