sexta-feira, julho 13, 2007

LIS NO PEITO por Jorge Miguel Marinho

Marco César me contou e eu sinceramente acredito. Não há por que não acreditar. Explico melhor: durante muito tempo, por alguma razão esse rapaz não conseguiu ver o rosto de Clarice, no fundo mesmo não quis. Eu por mim acho mesmo que ele não queria se ver diante dela e se satisfazia com as costas da menina que insinuavam o melhor rosto para a imaginação. Não é que tivesse medo de que ela fosse feia, mas talvez o que Clarice revelasse pela frente não fosse tão bom.

Marco César tinha pavor de se decepcionar como eu já disse a você, e certamente desviara o olhar dos olhos dela como um gesto natural de se guardar. Ele estava apaixonado por ela desde aquele primeiro instante em que tinha escutado a sua voz. Isso significa que Marco César amou Clarice pelas costas e se sentiu feliz em permanecer imóvel, sozinho e calado dentro da paixão. Por um tempo, é claro, um tempo até mesmo longo, mas viveu a alegria de amar a distância e tocar as partes mais guardadas de um corpo com a persistência e a intuição de quem olha e cristaliza instantâneos, flashes, flagrantes distraídos da vida para atender aos apelos da imaginação.

Gostava dos cabelos dela caindo até o meio das costas, cabelos quase crespos, quase loiros, quase bonitos se não fossem duas presilhas tão opressivas que pareciam estar ali para aprisionar um vôo. Tudo em Clarice era o impulso para um vôo como se ela fosse um pássaro todo livre dentro de uma gaiola ideal. Tenho a impressão de que ele até usou essas mesmas palavras quando me confessou o seu amor por uma menina sem rosto, porém não tenho certeza, e pouco importa aqui de onde vêm as palavras – essa história não é minha. De qualquer jeito Clarice precisava de pouco espaço para viver – com o tempo eu também percebi.

Ela era alta, magra em toda a estatura, provavelmente de seios muito pequenos e tímidos que Marco César chegou a ver de perfil uma vez ou outra quando ela se virava e ele no mesmo instante desviava o olhar. Esse meu amigo era mestre na arte de adiar.

Engraçada que a magreza de Clarice excitava Marco César, sobretudo a musculatura da perna e a cintura minúscula que contrastavam com uma ligeira redondeza das nádegas parecendo uma porção de carne a mais. Ele imaginava abraçar aquela carência de formas cobrindo Clarice na grama com seu corpo virgem e um volume de carnes que era o bastante para os dois. Não me contou, mas deve ter imaginado esse encontro na solidão do seu quarto, dentro do ar censurado dos banheiros, na sombra meio clandestina e silenciosa dos jardins, na excitação proibida das paredes e dos azulejos que projetam corpos nus e impossíveis que sentimos tocar.

Ele deve ter imaginado sim e até mesmo sentido a ilusão da sua pele se entregando à pele dela, até o dia em que o encontro de um rosto com o outro de fato aconteceu.

Foi na escola, debaixo de uma amoreira esquecida que pelo nome deve ter ficado com as folhas mais abertas para esperar o encontro de uma pessoa com a outra e fazer muita sombra para os jogos do amor.

Ele foi chegando de um lado com a cabeça baixa, olhando sem olhar direito o caminho dos pés. Ela veio vindo do outro lado com os olhos olhando e querendo ver se era sinal de chuva aquela nuvem escura num pedaço do céu. Marco César tinha o hábito de olhar os pés se movendo, tentando descobrir o que fazia ele mexer as pernas sem caminhar para um destino certo. Clarice gostava de pensar na água que vinha do céu ou corria na terra, sentindo que ela fazia parte de um mundo morno e líquido, às vezes chegava a transpirar nas partes mais íntimas, ficava meio molhada por dentro e por fora e não era difícil sentir um fio de suor descendo pelas costas mesmo nos dias de frio. Estranho que ele andava sempre para algum lugar, apenas andando por andar. No caso de Clarice, o engraçado é que ela não sabia nadar.

Como eu disse, na escola havia uma árvore solitária que ficava na extremidade direita de quem entra. Era uma amoreira que só era lembrada quando se abria de amoras que brotavam vermelhas como se a plenitude palpável da beleza fosse um estado de rubor. Muita coisa estava predestinada a acontecer debaixo dela e, se você passar lá por perto, vai ver que ela ainda continua solitária no mesmo lugar.

Marco César e Clarice iam sempre sozinhos buscar alguma coisa que se busca e não se sabe muito bem o que é debaixo de uma amoreira. Sentavam num banco de cimento coberto de pedras rústicas e ficavam esperando acontecer alguma coisa que não acontecia. Nunca tinham se encontrado antes porque a gente não antecipa um encontro com hora marcada debaixo de uma amoreira e o amor só acontece quando tem que acontecer. Como nunca acontecia nada, e isso era para ele e para ela uma ausência quase boa, no mínimo uma sensação de paz e liberdade, por ficarem livremente sozinhos mesmos sem querer – por mais uma artimanha do destino, os dois preenchiam esse vazio calmo da vida com o canto de um pássaro que sempre aparecia por lá. Marco César achava que era uma sanhaço, Clarice não se preocupava com a espécie dos seres vivos ou mortos mas, se perguntassem, responderia que era um bem-te-vi pela harmonia desse nome com o que ela sentia ouvindo e tentando imaginar de olhos fechados as cores de um pássaro que nunca se mostrava direito e nunca se deixava ver do jeito que ele devia ser.

Nesse dia o pássaro já estava lá meio escondido, e eles, chegando involuntariamente juntos, se falaram tentando ver primeiro o pássaro e esse primeiro diálogo aconteceu mais ou menos assim:

- É um sanhaço, não é?

- É nada, olha como é um bem-te-vi.

Ele olhou para ela e achou bom e até macio se sentir olhado por ela. Ela, que não se incomodava de ser vista por fora ou por dentro, sem querer, de repente respondeu uma pergunta que ele não chegou a fazer:

- Esse pássaro não deve ser só um pássaro, esse pássaro é um vôo. Presta atenção para você ver se não é.

Ele olhou para dentro de alguma coisa boa, morna e molhada nela e respondeu para a alegria que crescia dentro dele vendo e sentindo a existência tão próxima de uma linda mulher:

- É!

Marco César e Clarice falaram pouco e se olharam muito – e tudo pareceu que devia ser assim porque, dentro daquele quase silêncio, os dois sentiram que um brincava com o outro e essa brincadeira apenas insinuada era o modo mais exato de se encontrarem. Mais do que isso: os dois experimentavam juntos, um ao lado do outro, uma deliciosa algazarra interior.

A amoreira e o pássaro, cada qual seguindo a sua natureza e a sua função, permaneceram quietos, quase imóveis para não perderem os ruídos e os movimentos de uma brincadeira séria que já havia começado fazia tempo e nenhum ganhava do outro. Por acaso ou não e para o bem ou para o mal, esse encontro parecia um jogo de esconde-esconde, e quem entrasse no jogo só podia encontrar o amor.

fonte: Lis no Peito: um livro que pede perdão(p. 68 à p. 73). São Paulo: Biruta, 2005

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