segunda-feira, setembro 03, 2007

Jantar por Ana Miranda

A mesa está posta, eu mesma dispus os pratos, as taças, os talheres, os guardanapos para os lábios puros, resignada a fazer parte de um mundo verdadeiro, eu o espero para jantar há anos, o desejo de jantar com ele cresceu, foi tomando meu peito, pois tenho agora vontade de gritar, O que vais comer? logo saberás o prato principal desta noite, perfurmada desamparada solitária palpitante, vestido negro, luva negra apenas na mão esquerda, colar de pérolas, minhas almas se debatem dentro de mim e se arrastam atrás de mim como um rabo peludo, vou à janela, olho a rua, acendo um cigarro, fumo, Tudo está à tua espera, fumaça, cabelos presos, ando arrastando na cauda meu coração inconsciente, úmido, a campainha toca, oito horas, abro a porta, seus olhos marítimos são o corpo mostrando o espírito, um espelho surpreendente e atrás dele um homem, os dois embriagados de algo que não sei, Trouxe um amigo, ele diz, ao fechar a porta sinto uma faca destrinchando meu corpo, aquele amigo atrás dele como sua sombra e salvação, um pedaço de mim em cada parte e eu tão desamparada, um gesto qualquer, Encontro-me distanciada, eles bebem uísque, parecem fazer parte do mundo real, aos poucos seus corpos e seus rostos se iluminam para mim, mas ainda há sombras, nove horas, corpos vivos e verdadeiros de homens, por que ele trouxe alguém, terá medo de mim? suas palavras, seus sorrisos, seus olhares furtivos para as paredes da casa, tudo é tão profundo, um reflexo da lua acende o mar e o torna de um negro submerso, eles não querem perder os detalhes de mim como se eu fosse uma caçadora e eles duas presas afundadas no sofá, belos e nervosos, agora embriagados de mim, onze horas, Isto é o mundo, isto sou eu, Gosto de olhar pela janela de mim mesma, Vou vestir um agasalho, eles sussurram na sala, mas param de falar quando retorno, vencida, Sinto frio nos cabelos, Acenda meu cigarro, meia-noite, eles olham o relógio, olham a mesa, os pratos limpos garfos dois cálices duas da manhã, duas taças fêmeas bêbadas de vinho do corpo da mulher, eles vão embora achando que não houve jantar, esqueci de dizer que o jantar era eu. (Noturnos - Ed. Companhia das Letras)

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