segunda-feira, abril 17, 2006

Um conto para variar...

CASAMENTO

Ainda não sei bem o que sinto. Não sei se é desejo reprimido ou raiva ressentida do teu olhar míope e sem vida. Contento-me com o fato de não entender nada e assim permanecer equilibrada para sentir as ondas e as marolas da virada. Mas o que não aceito é a tua incapacidade de vislumbrar o erro. Sei também que isso é apego. Ressinto e emendo. Sinto-me vazia do medo. Ele que sempre me visitava por longas noites e dias, parece ter viajado para terras distantes, sem data certa de retornar à minha vida. Ficar sem ele dói. Mas é uma dor estranha, quase uma rede plana. Com ele se foi também o sono. As noites parecem um eterno desengano. Esta especialmente chorou muito. A água e o vento foram suas constantes nuances.

Mas o pior é que chove dentro de mim. Uma chuva rala e fina. Muita fria e vazia, a trazer para minha infinita nostalgia a falta de tudo que me habita. O meu caminhar solitário, a minha incompreensão do teu ideário, a minha incapacidade de amar sem itinerário. Resta somente a certeza de não esconder novamente os esqueletos no armário, para que eles não apodreçam e possam dançar incansavelmente nas noites do meu aquário. Já os guardei por muito tempo. Estão ainda empoeirados e sem vida. Quando os olho, me lembro da primeira vez que os escondi, longe do meu sentir inodoro. Era uma noite escura, mas sem chuva. A lua brilhava alta e ao dormir senti que a dor da morte que em mim se ausentava me era insuportável. Levantei-me, a tirei de dentro de mim e a coloquei no fundo do armário, atrás de todas as roupas jogadas, como se assim pudesse esconder aquilo que em mim se acentuava. Era a dor e a morte, ambas entre si casadas.

Se esconder um esqueleto já é complicado, imagine um casamento estragado. Arrancá-lo do fundo do poço em que ele se enfiou foi como entrar em um trem desgovernado a transitar entre o futuro e o passado. Primeiro fiz questão de me esquecer daquele estado. Depois desta noite da lua alta, passei anos dormindo como se nada houvesse no armário. Aí recebi a primeira mensagem, muito direta e clara, limpe o que te liberta. No início não entendi, mas de repente, num lampejo me veio clara a necessidade do desapego daquela matéria amorfa e inquieta.

Coloquei meu braço no escuro do móvel e somente com o tato comecei a procurar o casal disforme. Quando os encontrei, percebi que ambos estavam necrosados e sem nome. Mas não os consegui tirar imediatamente. Havia algo neles que os prendia àquele ambiente seco e sem dente. Foi quase uma luta arrancá-los da escuridão, mas quando finalmente eles desgrudaram, percebi que a dor que um dia ali habitara, já inexistia. A morte a levou, como numa dança vazia, a seduzir aquela perda para sua eterna moradia.

Foi somente neste momento que percebi o que tinha acontecido. Meu vício havia morrido, o vício da dor, do sentir vazio e sem frescor a emendar à minha amplidão e necessidade de torpor. E foi com a dor que o medo também se foi. Hoje restou somente o desencanto a chorar no meu coração, como a chuva lá fora, na escuridão sem forma, a molhar indefinidamente os desejos na plataforma desenhada apenas com a espera do nada junto com as mãos vazias e emendada. Sei que assim como a dor, um dia o desencanto se ausenta, mas seja como for, quando isso acontecer, talvez eu nem esteja mais na minha existência, posso me casar com a morte, se ela assim me orienta.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial