segunda-feira, setembro 18, 2006

Este é um texto que adoro ler nos meus momentos de alice...
"Para Maria da Graça - Paulo Mendes Campos

Quando ela chegou à idade avançada de 15 anos, eu lhe dei de presente o livro Alice no País da Maravilhas. Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca.

Aprende, pois, logo de saída para a grande vida a ler este livro como simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem a porta da realidade. A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou para pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares esta charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece esta palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas, nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados conseguem abrir uma porta bem fechada e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação banal e esperamos dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece geralmente às pessoas que comem bolo.

Maria há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser séria ou profunda.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon !" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato; experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?".

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os corredores chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não conseguirá saber quem venceu.

Para o bolso: se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de seres a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste! Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante:" Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como toda as vidas dariam um romance, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e mulheres que suspiram e dizem:" Minha vida daria um romance!". Sobretudos os homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente. E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida toda uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos.

O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo.Mas como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda pessoa deve ter três caixas para guardar o humor: uma caixa grande para o humor mais ou menor barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma, por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo degrandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de sofrimento ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com a grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com tal complacência, que tem medo de não poder sair mais de lá.

A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice , depois de ter chorado um lago, pensava: " Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas". Conclusão: a própria dor tem a sua medida. É feio, imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça ".

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