terça-feira, agosto 29, 2006

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres...

Não podia faltar nas referências de alguém que admira o Caio Fernando Abreu, a sua própria musa - Clarice Lispector... vejam como ele descreve quando e como a conheceu... coisa de fã...
"... cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me apromixei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário (...) Ela é por demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas (...) Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la..."
Agora segue trecho do último livro dela que li e que me impactou muitíssimo... acho que nem precisa dizer mais nada... as próprias palavras da autora no prefácio - "Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu" e o trecho a seguir já dizem tudo...
"... sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri, mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que se ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e tranquilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.
-pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver..." (Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Clarice Lispector)

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