quarta-feira, outubro 04, 2006

Cartas de Caio Fernando Abreu...

"... Foi mau, ontem. Fui mau, também. Menos com você, mais comigo mesmo. Depois não consegui dormir. Me bati pela casa até quase oito da manhã. Teria telefonado para você, não fosse tão inconveniente... Não era nada com você. Ou quase nada. Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Difícil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma pressa, uma urgência.
E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Porque o zen de repente escapa e se transforma em sem ? Sem que eu consiga controlar.
... Dormi uma três horas e acordei ouvindo Quereres, de Caetano. Repeti, várias vezes, cada vez mais alto. Ah, bruta-flor, bruta-flor do querer. Discutia tanto com Ana Cristina César, antes que ela acolhese a morte (acerdatamente? me pergunto até hoje, nunca sei responder): nossa necessidade fresca e neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado e Solitário para escrever Belos Textos Literários.
O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive atarvés de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável... O que tem me mantido vivo hoje é a ilusão ou a esperança dessa coisa, "esse lugar confuso", o Amor um dia. E de repente, te proíbem isso... Nem vivi nada ainda. E não sou sequer promíscuo. Dum romantismo que exige sexualidade e amor juntos. Nunca consegui. Uns vislumbres, visões de esplendor. Me pergunto se até a morte - será? Será amor essa carência e essa procura de amor, nunca encontrar a coisa?
Das minhas heterossexualidades, dois filhos mortos, não ficou nada. Das minhas homossexualidades, esse pânico lento e uma solidão medonha. A hora é tão grave.
Vim pegar energia. Sim. Preciso ver a terra, preciso do horizonte do pampa. Já começa a agir, meus ombros se soltaram. Olhei no espelho e aquela ruga entre as sobrancelhas se desfez. Não quero me tornar uma pessoa amarga, pesada, frustada. Não vou me tornar assim. Então vacilo, escorrego e a mania de perfeição virginiana e a estética libriana no dia seguinte me dizem "que vergonha, que vergonha, que vergonha".
... Quando te falo da idade, quando te falo do tempo - e não tivemos tempo - queria te falar de Cronos, Saturno, da volta pelo Zodíaco quando se completa 30 anos. A tua estrela é muito clara, tem sinais bons na tua testa. Compreendo teu Plutão e a Lua encarcerados na Casa XII - as emoções e as paixões aprisionadas -, e também Urano, todo o impulso bloqueado. Na mesma casa, a do Karma, a dos espíritos que mais sofrem, tenho também o Sol, Mercúrio e Netuno. Somos muito parecidos, de jeitos totalmente diferentes: somos espantosamente parecidos. E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim - para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura. Perdoe a minha precariedade e as minhas tentativas inábeis, desajeitadas, de segurar a maçã no escuro. Me queira bem... "(Cartas - Caio Fernando Abreu - Ed. Aeroplano)

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