quarta-feira, abril 26, 2006

Mais um conto... como explicar a paixão por livros...

A DESCOBERTA DA ESCOLHA


Sempre tivera paixão por livros. Lembrou de quando tinha nove ou dez anos e seu passatempo preferido – principalmente no período de férias – era ir à livraria perto da sua casa e comprar com a sua mesada uma pequena brochura para ler o resto do dia.

Ela ficava tão ensimesmada lendo que nem percebia o dia passar. Não era raro ter que esconder-se no banheiro para passar a noite adentro devorando as palavras escritas no papel. Palavras que agora restavam apenas na sua memória. Fugir para o banheiro era a sua forma de driblar a dificuldade quando a família viajava para o pequeno apartamento na praia e o quarto coletivo a impedia de ler na cama, como sempre fazia na sua casa.

Lembrou-se também que ás vezes, pela sua insaciável curiosidade, o livro não durava mais que um dia. Quando isso acontecia, ela juntava as moedas do troco do dia anterior com a contribuição sempre farta da sua tia preferida para já – na manhã seguinte – ir à livraria e escolher outro amigo para passar o dia.

As histórias que ficaram nas suas lembranças são muito vivas, apesar de um pouco rala, com alguns buracos de esquecimentos. Lembra que gostou muito de um suspense onde as crianças desvendavam o mistério seguindo o vilão de trás para frente e que chorou de emoção quando leu sobre a tristeza que a chuva sentia por ter ver sempre classificado como “dia feio” aquele em que ela resolvia aparecer. Um pouco mais velha, ficou muito tocada pelo conto de uma menina loira que se submetia às crueldades de sua colega da escola só para poder ler um livro do Monteiro Lobato, se identificou com aquela pequena criatura que ao conseguir pôr as suas mãos no maço grosso de papéis sentiu ter conhecido seu amante e desde então, entendeu perfeitamente a clandestinidade dos sentimentos, principalmente da felicidade.

E assim foi crescendo, sob os olhares e as palavras de seus pais, é uma menina diferente mesmo, diziam eles entre desiludidos e entusiasmados. A paixão pelos livros não diminuiu, mas acabou sendo diluída e misturada com outras paixões: a música, o cinema e porque não, os rapazes que sempre acabavam aparecendo nestas paragens.

Mas foi só quando fez vinte e oito anos que percebeu que não escolhia seus livros. Foi uma descoberta que a deixou estonteada e sem entender nada. Até aquele momento eram vários os livros que havia começado e não tinha conseguido terminar. Tantos que nem conseguiria precisar. Até porque quando dividiu a sua paixão por livros com a música, cinema e garotos, passou também a não dedicar os seus dias inteiramente a eles – como quando fazia na infância – e nem sempre a um só livro por vez. Era freqüente ler quatro ou até cinco livros ao mesmo tempo.

Esta mania fez com que começasse a colecionar além de livros, marcadores. Mas não era raro ter que dobrar a ponta superior da página que estava lendo para poder recomeçar depois. Por isso, a maioria dos seus livros tinha as páginas marcadas. Gostava disso. Era como se desenvolvesse uma forma de os possuir mesmo não os lendo até o final.

Porém até aquele momento não tinha percebido que isso acontecia. Na verdade, naquela fração de segundos compreendera que quem a escolhia eram os livros e não era ela quem os escolhia. Tomar consciência desta falta de controle e poder na escolha das suas leituras foi como tomar um choque. Ter o frio e o quente juntos a espantar o seu sentimento de pertencer inócuo.

Ao mesmo tempo, sentiu um certo contentamento. Percebera afinal que não era ela quem não conseguia escolher entre diferentes paixões.A partir daquele momento, não precisaria mais sentir aquela conhecida sensação de culpa que a invadia quando entrava em uma livraria e apesar de lembrar dos muitos livros ainda não lidos – inclusive dos começados e não terminados – saía com a sacola cheia de novas iguarias. Sorriu ao entender que sentir aquilo não tinha mais sentido com aquela descoberta.

Certamente aquele foi um ritual de passagem da sua recorrente intermitência e culpada necessidade de penitências. Depois de perceber que eram os livros que a escolhia, sempre que a perguntavam sobre uma nova leitura, dizia aliviada, ainda não li, ele ainda não quis me conhecer, mas não me chateio – completava – sei que se ainda não me escolheu é que eu ainda não estou pronta para lê-lo.

Foi com esta leveza que começou a colocar mais estantes nas paredes do apartamento que antes estavam nuas. Afinal, os livros eram tantos e o tempo tão impreciso, pensava sonolenta e desatenta, deitada com eles ao redor, como inserida em um paraíso aonde não só a morte, mas também a leitura, é muito lenta.

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