segunda-feira, agosto 07, 2006

Última parte... Conto Trinta Anos...

3 - A estrela

Até o final da tarde, Eu não conseguiu tirar os olhos do Outro que vez ou outra, insistia em permanecer vidrado olhando para os seus olhos. No caminho de volta para casa, Eu ainda pôde sentir a presença do Outro durante todo o percurso, mas diferente das outras vezes, a imagem do Outro não estava refletida em nenhum lugar, era uma simples presença.

Quando chegou em casa e verificou a secretária eletrônica sem nenhuma mensagem, a pergunta do Outro apareceu nítida na sua mente – Quem sou eu? – e por um momento Eu pensou em enlouquecer e perder todo o sentido da realidade, em se distanciar de tal forma de toda aquela vida que não era a dele e em iniciar uma nova identidade, fazer tudo aquilo que ele havia se negado há tanto tempo, em acordar cedo para ouvir os sons dos pássaros, ir para a Índia sem se preocupar com a passagem de volta, sentir o cheiro da natureza com o seu corpo e principalmente em se dar para alguém como nunca havia feito. A inexistência do amor. Das suas dores, esta era a que mais doía e a que mais exaltava, como um estandarte.

Lembrou imediatamente de um poema do Paulo Leminski que diz “O homem com uma dor é muito mais elegante, anda assim de lado, como se chegasse atrasado, caminha mais adiante, carrega o peso da dor como se portasse medalhas” e pensou no quanto a sua dor havia se transformado em seu vício. A dor da solidão.

Nisso, o Outro surgiu, não mais como uma imagem intrusa em um dos espelhos ou janelas da casa, mas bem na sua frente, carne, pele, cheiro. O sorriso do Outro, a face do Outro e o que mais o enternecia e o assustava, a voz do Outro:

- Acho que agora nós podemos conversar. Você já conseguiu pensar em algumas coisas importantes para mim, ou seja, para você, ou melhor, para nós dois. E o que vem a seguir é o que determinará o seu futuro, ou seja, o meu passado, ou melhor a nossa vida – O Outro disse isso e apesar da repetição, Eu ficou paralisado tentando compreender o que viria a seguir.

Foi quando o Outro o surpreendeu e o tirou do seu estado catatônico apenas sussurrando uma canção infantil. Num primeiro momento, Eu não reconheceu a canção e apenas ficou encantado com a melodia e a letra que dizia coisas bonitas sobre o amor de uma criança e uma estrela, sua amiga imaginária. Foi apenas quando o Outro entoou “e éramos tão distantes que um dia você se afastou tanto que nunca mais me encontrou” que Eu se lembrou que o autor daquela canção era ele mesmo. Ao se deparar com sua própria criação, percebeu que lágrimas desciam incontrolavelmente de seu rosto enquanto o Outro perguntou:

- Porque você a abandonou? Ela esteve sempre presente na sua vida, mesmo nos dias que as nuvens a encobriam e você não conseguia vê-la, ela estava lá, aguardando a oportunidade de estar com você.

Eu, respondeu, num fio de voz:

- Eu nunca imaginei que ela realmente existisse... achava que era apenas ilusão do meu coração de criança. Como você a conheceu? - O Outro olhou fixamente para os olhos de Eu e disse:

- Foi ela que me trouxe aqui, para te ajudar a perceber o quanto é necessário acreditar nas suas intuições e principalmente soltar o seu coração. Você não imagina como foi a minha vida até aqui, é uma solidão sem fim, tanta tristeza, tanta dor, tanto abandono e quanto mais me aproximo da sua idade percebo que enquanto você não confiar no seu amor, nenhum de nós vai resistir, pois não conseguirei mais ser você, nem você suportará a dor de ser eu.

- Confiar como? – disse Eu – nem consigo entender o que sinto, como vou confiar em algo que não compreendo.

- Este é exatamente o seu problema, você não precisa compreender com a razão, não é sempre o cérebro que consegue entender as coisas mais importantes da vida, mas sim o coração. Tenha a sabedoria de ouvir o seu coração, mesmo quando ele lhe parecer errado, o escute, preste atenção nele – enquanto o Outro lhe dizia isso, Eu começou a sentir cada vez mais seu órgão vital batendo, ele batia com tanta força, tanta precisão que Eu pensou que fosse explodir e foi exatamente neste instante que uma estrela, saiu do coração do Outro e se alojou no coração de Eu, só bastou isso para que o Outro se desmaterializasse na sua frente e lhe dissesse num sussurro – Agora estamos todos juntos... viva a sua vida como se fosse uma estrela, tenha a percepção do infinito, mas escute sempre o seu coração... Faça a nossa vida diferente do que a que eu vivi...

Eu começou a se sentir tão leve, tão impreciso e principalmente, tão louco que não se importou com o que os outros iriam dizer quando desceu as escadas do prédio e correu para o meio da rua, neste momento, uma forte chuva desabou sobre a cidade e Eu passou a dançar no meio da rua, só, sorridente, com uma estrela a dançar nos seus lábios.










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