sábado, julho 15, 2006

Continuando a história... O começo está na publicação de 08/07...

AINDA NOS FRAGMENTOS DA MEMÓRIA DELA...

Quarto ato – o despertar

Um dia ela realmente acordou. Foi um dia muito tempo depois que ele deixou de compreendê-la. Não foi um dia qualquer nem tampouco um despertar comum. Até então, quando da cama se levantava, ela sentia deixar – não saberia se o seu corpo, a sua sombra ou apenas um esboço – ainda a rolar indefinidamente no curto espaço do colchão a roçar contra o estrado, eterno ir e voltar.

Mas nesse dia foi diferente. Ao abrir os olhos, teve o vislumbre da pintura do sonho que se apropriou da sua noite e imediatamente sentiu que algo havia mudado. Permaneceu na cama, como gostava de fazer, como um gato a demorar-se para realmente acordar. Leu algo bem ao acaso, sem importar ou preocupar-se com o tempo e o vento que insistiam em soar.

Foi somente depois que ela percebeu o quanto aquele despertar era único. Ao levantar-se, compreendeu que havia trazido consigo – aquilo que sem muita precisão tinha ciência que não a acompanhava. Sentir esta parte estranha e ao mesmo tempo tão sua, tão particular se incorporar à sua forma, simulacro de encanto e recanto, a procurar incansavelmente o seu canto, trouxe-lhe uma nova emoção na alma.

Somente neste dia entendeu quanto tempo havia perdido dormindo. Pois nem sonhos bonitos, nem pinturas agradáveis ocuparam aquele tempo de profunda letargia, sonolência tardia e acordou com gosto de encontro na boca. Encontro com o indefinível, com o impreciso e com o que ainda nem idealizo, pensou ela. Encontro com o ar, a água, o vento, o silêncio e as palavras. Estas ainda tão tímidas e sinceras que apenas ensaiam a primavera de poderem brotar. No entanto, ela sabia que aquele encontro tinha a ver com aquele esboço que naquele dia resolveu se levantar e a acompanhar.

Na primeira metade do dia, a surpresa misturada à incompreensão dos seus sentimentos, a levaram pensar em voltar para cama e nela permanecer o dia inteiro. Sem ter que pensar, definir, nem decidir nada, com o pensamento apenas focado em descansar. Deixar o corpo solto e a mente vazia a emendar a fantasia do ser e estar. Deitou-se.

A dor no corpo e a inconstância dos pensamentos, a cada momento a inaugurarem novos sentimentos fez impossível à permanência inerte. Aí, levantou-se novamente, já um pouco acostumada com a sua nova parte a lhe acompanhar e foi tomar banho, ver se a água conseguia tornar seus pensamentos mais claros, mais limpos, menos raros.

Ao sair, olhou fundo no espelho e aí entendeu que o gosto do encontro no despertar era exatamente aquele, o confronto da sua imagem refletida com a sua forma, ainda tão indefinida, tão imprecisa, tão diluída na paisagem que a seguia, serena e vazia, cheia apenas da verde poesia do beijar em demasia, sem encontrar o calor que cala o corpo na alma que o silencia.

A partir daí, a confusão foi embora e o que a sucedeu foi mesmo o medo. Mas que medo, lhe dizia aquele corpo, aquela sombra, aquele esboço descansado por muito tempo ter permanecido deitado, sonhando, enquanto ela simplesmente tentava viver.

A resposta veio rápida como uma flecha a acertar de forma certeira o alvo rarefeito, medo da covardia, disse em voz alta, como se assim pudesse responder também para a sua recorrente paralisia, ainda tão firme e forte, tentando encontrar a sorte na sua imagem de solução e morte.

Depois, sentou-se na cadeira em que costumava tomar café e ler jornal, só que desta vez, o seu único acompanhante era o seu próprio esboço que junto ao seu medo, tentavam compreenderem o espaço e o tempo da sua aparente agonia, transformada em desejo ou alegoria, tentando entender o que nem mesmo ela sabia.

A outra metade do dia passou sem que ela percebesse. Só notou quando começou a anoitecer. Mas a única mudança no seu sentir era com relação à luminosidade do sol que passou a ser primeiro das estrelas e depois da lua, o tempo interno parecia parado, ainda impreciso, afinal para quem havia passado vários anos dormindo, o tempo é mesmo relativo, pensou.

Foi apenas quando a lua despontou no céu com todo o seu esplendor que ela percebeu que se reaproximava a hora de deitar-se novamente, dormir. Todos os sentimentos foram comandados por esta imensa vontade de esquecer tudo e só deixar o corpo soltar as amarras sobre o colchão, ainda a ranger sob o estrado velho de madeira.

Num repente, a sensação daquela sua outra parte se foi, ainda não saberia dizer se era feita pelo seu corpo, sua sombra ou seu esboço, mas isso não mais importava. Aquilo que ela ainda não sabia ao certo o que era, a havia abandonado indefinidamente e apesar do alívio, deixou saudade, como um curativo que depois de muito ficar para curar a ferida, deixa a pele branca e sensível a sentir a sua ausência furtiva.

Cumprir o ritual noturno com a consciência da falta que trazia, escovar os dentes, pegar um copo de água para matar a sede dos seus sonhos, recolher os livros que lhe fariam companhia naquela noite, escolher versos, trechos ao acaso, não se importar em terminar de ler nenhum deles, deixar todos apenas iniciados para dar a impressão da continuidade da existência, da eternidade das experiências e principalmente da presença da ausência, foi mais difícil do que ela havia imaginado.

Ao deitar-se naquela noite, sentiu dentro do seu peito uma dor tão pungente como se uma faca muito fina e fria o tivesse atravessado sem nenhuma cerimônia, nem parcimônia, apenas com a ânsia da vibrante fantasia. Num repente, a dor se foi, o sangue se acaso pingou ficou pálido, transparente como se a dar a impressão de ausente. A sonolência aos poucos invadiu seu ser afetou primeiro seu sentido e somente depois o seu pensamento. Em pouco tempo, a sensação do descansar a invadiu como se fosse um exército inimigo, sem complacência ou inocência. Invasão sem nenhuma razão ou satisfação. Invasão certamente sem solução. Do dormir para aguardar o novo despertar - sem dor, nem partes escondidas -vazio de acompanhantes secretos, e com a vida não vivida. Despertar cheio de carícias e recorrente nostalgia daquela parte ausente que para sempre havia se perdido dela naquele dia.

Manhã seguinte. Ainda não saberia dizer muito bem o que sentia. Não podia precisar se era desejo reprimido ou raiva ressentida do seu olhar míope e sem vida. Contentava-se com o fato de não entender nada e assim permanecer equilibrada para sentir as ondas e as marolas da virada. Mas o que não aceitava é a incapacidade de vislumbrar o erro. Sabia também que isso era apego. Ressentia e emendava. Sentia-se vazia do medo. Ele que sempre a visitava por longas noites e dias, parecia ter viajado para terras distantes, sem data certa de retornar à sua vida. Ficar sem ele dói, pensou ela. Mas era uma dor estranha, quase como uma rede plana. Com ele se foi também o sono. A noite pareceu um eterno desengano. Esta especialmente chorou muito. A água e o vento foram suas constantes nuances.

Mas o pior é que chovia dentro dela. Uma chuva rala e fina. Muita fria e vazia, a trazer para a sua infinita nostalgia a falta de tudo que a habitava. O seu caminhar solitário, a sua incompreensão do seu ideário, a sua incapacidade de amar sem itinerário. Restava somente a certeza de não querer mais esconder os esqueletos no armário, para que eles não apodrecessem e pudessem dançar incansavelmente nas noites do seu aquário. Já os guardei por muito tempo, pensou novamente. Estavam ainda empoeirados e sem vida. Quando os olhava, lembrava-se da primeira vez que os tinha escondido, longe do seu sentir inodoro. Era uma noite escura, mas sem chuva, a lua brilhava alta e ao dormir sentiu que a dor da morte que dentro dela se ausentava lhe era insuportável. Levantou-se, a tirou do seu coração e a colocou no fundo do seu armário, atrás de todas as roupas jogadas, como se assim pudesse esconder aquilo que no seu íntimo se acentuava. Era a dor e a morte, ambas entre si casadas.

Se esconder um esqueleto já é complicado, imagine um casamento estragado. Arrancá-lo do fundo do poço em que ele se enfiou foi como entrar em um trem desgovernado a transitar entre o futuro e o passado. Primeiro fez questão de se esquecer daquele estado. Depois desta noite de lua alta, passou anos dormindo como se nada houvesse no quarto a apodrecer. Aí recebeu a primeira mensagem, muito direta e clara, limpe o que te liberta. No início não entendeu, mas de repente, num lampejo lhe veio clara a necessidade do desapego daquela matéria amorfa e inquieta.

Colocou seu braço no escuro do móvel e somente com o tato começou a procurar o casal disforme. Quando os encontrou, percebeu que ambos estavam necrosados e sem nome. Mas não os conseguiu tirar imediatamente. Havia algo neles que os prendia àquele ambiente seco e sem dente. Foi quase uma luta arrancá-los da escuridão, mas quando finalmente eles desgrudaram, percebeu que a dor que um dia ali habitara, já inexistia. A morte a levou, como numa dança vazia, a seduzir aquela perda para sua eterna moradia.

Foi somente neste momento que percebeu que seu vício havia morrido. O vício da dor, do sentir vazio e sem frescor a emendar à sua amplidão e necessidade de torpor. Esse era o seu verdadeiro despertar, esta era a sombra que no dia anterior havia a acompanhado e depois a abandonou para sempre. E foi com a dor que o medo também se foi. Restou somente a incerteza a chorar no seu coração, como a chuva lá fora, na escuridão sem forma, a molhar indefinidamente os desejos na plataforma desenhada com a espera do nada junto com as mãos vazias e emendadas. Sabia que assim como a dor, um dia a incerteza ia se ausentar, mas seja como for, quando isso acontecer, talvez eu nem esteja mais na minha existência, posso me casar com a morte, se ela assim me orienta, pensou ainda mais uma vez antes de se deitar novamente na cama, calma e sonolenta.

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