quinta-feira, março 27, 2008

Uma Carta de Clarice

Berna, 06 de janeiro de 1948

Minha florzinha,

Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não se parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa se perder de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo. Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar, e contar experiências minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo.
Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos levar de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar.
Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas.Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? assim fiquei eu..., em que pese a dura comparação. Para me adatar (sic) ao que era inadatável (sic), para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus aguilhões - cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que nos leve de volta, só a idéia de ver você e retormar um pouco minha vida - que não era maravilhosa, mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Mariazinha, mulher do Milton, um dia desses encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que me movo com a lassidão de uma mulher de cinqüenta anos.Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria nem necessidade de lhe dizer, então... Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pactos com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mesma mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita- não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Eu tenho tanto medo que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas. Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige.
Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber -pois somente saber de sua presença me transformaria e me daria vida e alegria. Isso seria uma lição para você. Ver o que pode suceder quando se pactuou com a comodidade de alma. Tenha coragem de se transformar, minha querida, de fazer o que você deseja - seja sair nos week-end, seja o que for.
Me escreva sem a preocupação de falar coisas neutras -porque como poderíamos fazer bem uma a outra sem esse mínimo de sinceridade? Que o ano novo lhe traga todas as felicidades, minha querida. Receba um abraço de muita saudade, de enorme saudade de sua irmã.
Clarice
Essa carta foi escrita por Clarice Lispector à sua irmã Tânia Kaufman meses antes da escritora vir passar férias no Brasil, depois de quatroanos vivendo em Berna, na Suíça, acompanhando seu marido, o diplomataPaulo Valente.

sábado, março 08, 2008

Agora

Tudo confuso. Agora nublado. Às vezes sinto uma amplidão junto com a apatia. Sensação de ser apenas um ponto na pintura expressionista. Sai de mim e ainda não retornei. Voei longe e as pernas sentem cansaço. Não quero companhia. Ao menos não faço nada para a ter. É como se a vida e a morte estivessem de mãos dadas e eu ainda não sei para que lado eu vou. Será que você sabe? Olho para você e sinto que não. Quase me demoro em te perceber. Para onde vais, pergunto baixo, quase sem querer ouvir a resposta, você só me olha e sorri. Como se a brancura dos seus dentes fosse capaz de me dizer coisas bonitas, irremediáveis, dessas que você nunca teve a coragem e a decência de falar. E por mais estranho que seja, escuto o que teus dentes pretendem me dizer. Armo a cena e apesar de tudo, participo dela. Como uma pessoa à beira de tudo o que há. De ser possuída inteira e estar morta. Fechei os olhos e não mais te vi. Acabei de escolher para quem dei a mão. É a vida que me chama e eu não consigo ir para longe dela. Descanso e penso que amanhã quem sabe, eu te diga tudo o que está no meu peito e quer sair. Quem sabe... você também me escuta e me mostra a língua. Prefiro ela aos dentes. Aspereza quente. Como o sangue da cortina. E assim como quem não quer nada, talvez eu saia desta nostalgia. E te dê a mão. Simples assim. Pura magia.

segunda-feira, março 03, 2008

Dissonância...

Sinto uma vibração dissonante no meu corpo. Como uma música com cheiro de morte e movimento de um lobo. Ele habita o meu ventre. Espera ansiosamente a lua cheia de cada mês.
Não consigo escutar a pulsação. Apenas a sinto como uma ânsia no peito. É a vida estagnada que começou a andar. Tanta energia corre nas minhas veias que tenho insônia. Não consigo fechar os olhos e quando o faço uma estrada sinuosa e próxima ao penhasco aparece. Dormi muito enquanto vivia, agora é hora de descansar acordada. Alerta para toda a dor e luz.
Acorde vida para que eu não mais descanse em paz.