quinta-feira, agosto 31, 2006

Mais inspiração...

Este conto do Machado de Assis me foi mostrado por uma amiga que depois de ler o meu conto Apocalipse - publicado neste blog no dia 04 de Maio (acesse o link...inst�ntaneos internos: Mais um conto... ) disse que eles tinham a ver... imagine só o quanto fiquei feliz de pensar que a minha fonte de inspiração pode ter alguma identidade com o grande mestre da literatura... com certeza é exagero - coisas próprias de amigos... mesmo assim, este conto, cujo nome é um gênero que expressa uma veradde moral em fábula, me conquistou ... vejam o que vcs acham...
Um Apólogo
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
-Porque está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
- Deixe-me senhora.
- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
- Mas você é orgulhosa.
- Decerto que sou.
- Mas por quê?
- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose, senão eu?
- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
- Também os batedores vão adiante do Imperador.
- Você é Imperador?
- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou á casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, alcochetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
- Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância ? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: - Anda, aprende tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária ! (Contos - Machado de Assis)

quarta-feira, agosto 30, 2006

"As cidades e as trocas"

A primeira vez que li "As Cidades Invisíveis" - Italo Calvino, nem acreditei na sensibilidade das suas palavras... descrever as cidades com sentimentos tão humanos, únicos e atemporais... hoje vejo que talvez aí tenha começado a minha vontade de me comunicar com as cidades que visito... é o tipo de livro que mantenho sempre por perto para poder reler, mil-ler trasnver... esse é um dos textos que mais gosto...


As Cidades e as Trocas...

Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.

Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com os cabelos brancos; uma anã, duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.

Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carossel das fantasias teria fim."

terça-feira, agosto 29, 2006

Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres...

Não podia faltar nas referências de alguém que admira o Caio Fernando Abreu, a sua própria musa - Clarice Lispector... vejam como ele descreve quando e como a conheceu... coisa de fã...
"... cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me apromixei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário (...) Ela é por demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas (...) Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la..."
Agora segue trecho do último livro dela que li e que me impactou muitíssimo... acho que nem precisa dizer mais nada... as próprias palavras da autora no prefácio - "Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu" e o trecho a seguir já dizem tudo...
"... sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri, mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que se ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e tranquilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.
-pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver..." (Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Clarice Lispector)

segunda-feira, agosto 28, 2006

A Troca e a Tarefa...

Ganhei este livro de uma amiga - tão sensível- que me mostrou o conto que achou que tinha a ver comigo... nem preciso dizer que chorei de emoção... o conto é grande e se chama "A Troca e a Tarefa" da escritora Lygia Bojunga do livro "Tchau"...
"...Era um sonho muito bonito, todo acontecido em azul; tinha azul para qualquer gosto, do mais fraquinho ao mais forte. Eu estava lá mesmo, deitada na praia. E era de madrugada. Na minha frente tinha uma parede tapando o mar. Vi duas janelas na parede. Me levantei para ir olhar.
Numa estava escrito A TROCA; na outra, a TAREFA. Uma estava fechada; espiei pelo vidro fosco mas não enxerguei nada do outro lado. Bati no vidro, bati, bati com força. Mas só ouvi o barulho do mar.
Fui para outra janela. Também fechada. E o vidro também: não me deixando ver do outro lado. Bati.
- Que é?
Até me espantei de ouvir a voz perguntando.
- Abre - eu respondi - Eu quero ver do outro lado.
A janela continuou fechada. Mas a voz falou:
- Eu te livro desse amor, desse peso.
- O quê?
- Esse amor que você está sofrendo, essa vontade que você está sentindo de morrer: eu te livro disso.
- De que jeito?
- Quando a história estiver pronta você vai ver.
- História? que história?
A voz falou mais baixo:
- Escreve a história dessa dor e eu te livro dela. É uma troca: eu te prometo.
- O quê? Fala mais alto, eu quase que só escuto o mar.
- O mar. Lembra da poesia que você escreveu?
- Foi tão bom!
Aí a voz se confundiu com o barulho do mar. Eu acordei. A noite já ia virando dia; o céu era meio vermelho e a praia estava muito bonita. Dentro de mim tinha uma curiosidade nascendo: será que eu ia conseguir fazer uma história da dor que eu estava sentindo?
Voltei para o internato. Cada hora do recreio, cada domingo inteiro, cada hora-de-fazer-dever eu escrevia a história da minha vontade de morrer. E fui achando tão difícil de fazer, que, em vez de sentir vontade de morrer, eu só pensava como é que se fazia a história de uma vontade de morrer, em vez, de sentir a dor do amor, eu só sentia a força que eu fazia para contar a dor.
Então, quando um dia a história ficou pronta, a vontade de morrer tinha sumido; o amor pelo Omar também: no lugar deles agora só tinha a história deles. Fiz que nem na poesia: transformei o Omar no mar. Um mar tão bom de olhar. E inventei uma ilha pra botar nele: uma ilha para eu ir lá morar: de praia de areia fininha, onde o mar chegava a toda hora. E fui inventando uma porção de coisas pra acontecer na ilha. A história ficou tão grande. Acabou virando um livro. Foi o meu primeiro livro. Se chamou "Do outro lado da ilha" (...)
Os anos foram passando. E eu não parei mais de transformar: tinha me acostumado com aquilo. Levantava (levantava cedo), tomava café (com leite), escovava os dentes (já pensando o que que eu ia escrever), fechava a porta (não sei transformar de porta aberta) e começava: pegava a lembrança de uma maiga de infância que eu nunca mais tinha visto, imaginava a vida que ela tinha levado; virava ela num personagem principal; pegava o quarto de um hotel em que eu tinha ficado numa viagem e virava ele num capítulo; pegava a vontade que eu tinha tido aos 10 anos de ser astronauta e transformava ela numa viagem espacial em 200 páginas; pegava a saudade da minha mãe que tinha morrido (ela se chamava Violeta) e transformava a saudade num buquê que o herói do meu último livro ia dar para a namorada.
Fui me sentindo tão poderosa de poder transformar tudo assim!
Quando acabava um livro, mal descansava: já começava outro. Eu não queria mais descansar: eu só queria ficar assim: virando, escrevendo: aqui: na minha mesa de trabalho. Cada ano que passava eu ficava mais e mais horas aqui ..."

domingo, agosto 27, 2006

Ciclos...

Estou prestes a iniciar mais um ciclo... como uma espécie de retomada e homenagem às minhas referências, nesta próxima semana publicarei textos, contos, pedaços de histórias que me transformaram durante a minha existência... Coisas que li durante a minha vida até aqui e me fizeram ser exatamente do jeito que sou... fragmentos de memórias... espero que gostem...

Para começar, não poderia ser algo que não fosse do Caio Fernando Abreu, meu muso inspirador... eu gosto de tantas coisas que ele escreveu que é muito difícil escolher... mas esta história é realmente especial...

"Pequenas Epifanias - Caio Fernando Abreu



Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso - aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome. "

quinta-feira, agosto 24, 2006

Felicidade ausente...

Teu inverno é quente
Tua alegria vem da lágrima da chuva que te banha
No mesmo horário todos os dias,
Sem nenhuma lástima ou manha.

Sinto no semblante dos teus habitantes,
O rosto da harmonia,
Perdida entre a alegria e a agonia,
Da chuva a molhar o quente
Da tua coragem ainda eivada da covardia.

O teu grande território,
As desigualdades e a pobreza que em ti moram,
Alimentam as esperanças que carrego,
Da transformação da identidade do faminto,
Em um ser completo repleto de vontades e afinco.

Os primeiros passos com tropeços,
Da caminhada da vida digna,
Sem sorte ou corte,
Eivada apenas do viver forte,
Sensação do cansaço ausente,
Casada com o apreço renitente.
Do que apenas se parece com a morte.


Enlouqueço, sem início ou começo,
Apenas a escutar as vozes a invadir meu encantando leito.
Penso que são fortes e sem sorte,
A emendar a ausência de corte,
Sem vitória ou adereço.

Entendo que a minha alegria,
É sempre presa à fantasia,
Do término insatisfeito e
Do improvável recomeço sem magia.

Esclareço sem razão,
Apenas ao meu coração,
O bater secreto do sentimento,
A se perder na imensidão das veias,
Do rio caudaloso de sangue.
Sentir inerte a ligar as ondas do enaltecimento.

O percebo inacabado e sorridente,
Incompleto e incoerente,
Mas repleto da felicidade,
Há tanto de mim ausente.

quarta-feira, agosto 23, 2006

A lua e o rio...

Escrevi esta poesia quando viajei pelo Rio São Francisco... hoje percebo que ela fala mais sobre mim do que na época pude imaginar... é próprio do inferno astral nos mostrar o que é lógico porém atemporal... espero que gostem...

A LUA E O RIO

Quando o conheci ela se escondeu
Dias ficou perdida sem que eu a procurasse,
Nunca o havia vislumbrado e assim que o vi,
Quis sentir seu hálito.

A primeira impressão foi de imensidão,
Longa imersão,
Água doce do rio,
A fluir com mansidão.

Depois veio a curiosidade,
Vontade irresistível de tocar suas águas,
Uma mistura de timidez e respeito me paralisou e,
Contive o contato árido.

Quando o deixei,
Ela logo apareceu no céu,
Grande, cheia e branca,
Como se a brilhar ao léu.

Compreendi o desencontro,
É tanta beleza e claridade,
Que onde ele está, ela falta,
E aonde ele vai, ela sai.

Eterna dança,
Que intercala a harmonia,
De sempre brilhar e enredar,
Sem querer terminar o que ainda nem pôde começar...

Vai lua, chama o rio,
Pede a ele para ficar,
Pois vocês juntos,
São o grande desafio,
De ser e estar,
Ficar e chegar,
Restar e achar,
O que ainda nem sei procurar,
E que encontra no céu o seu lugar
E no rio o seu luar.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Cartógrafa...

Fiz a cartografia do meu desejo. Reconheci a terra ao redor do teu cerco. Retirei a água que banhou seus pés. Percebi a árvore que te deu a sombra da seca. Andei mais. Atravessei estradas, riachos e montanhas. Tu não foste comigo. Ficaste parado na areia da praia deserta. Vi meus pés sangrando. Olhei as minhas mãos vazias. O contorno da minha mágoa me fez entender o tamanho da tua morada. Da sombra que te protegeu do sol. Tomei a água que me deu o encontro com a sede. Ouvi o grito do meu ventre que tocou o meu consorte. O olhar que deteve em mim o amor intermitente e forte. A vida em mim estagnada como se fosse uma simples demora. Reconstrui as linhas, te dei a cor do mapa da minha mina, reescrevi o segredo da nossa rima. Continuei a andar e ainda não encontrei o sinal da minha sina. Até agora só compreendi a solidão, quase como uma ladainha. Como se fosse um recorte em um sentido de morte, caminho que nós para sempre abandonamos no campo da irrestrita e inacabada sorte.

domingo, agosto 20, 2006

Meio beijo...

Meio beijo
Curto, apressado e até transtornado,
Símbolo do desejo simples
Puro e transformado

Meia boca
Leve, adocicada e até mareada,
Vontade de engolir o mundo,
Sem dele tirar pedaço ou o rumo.

Meia língua
Úmida, porosa e até esburacada,
Arrepio que desce o corpo,
E nele encontra morada

Meia fome
Só parcialmente saciada
A fome é tanta que é preciso um beijo inteiro,
Com dentes totalmente presentes,
Para realmente enfrentá-la.

sábado, agosto 19, 2006

Em tempos de Flip... Poesia feita em Parati...

FESTA NO AR

Estranheza que me causa,
Avistar nas ruas de pedras irregulares,
Com a música da harpa a soar,
Homens a portar distintivos enormes
Segurando metralhadoras no ar.

Em seus olhos, não há nada que indique desconforto,
A companhia do instrumento matador,
É para eles costume, labor,
E não causa espanto ou dor.

Meu coração aperta,
E sinto um não sei o quê enorme,
Vontade de sumir no mundo,
Para dele não precisar esquecer o nome,
Sinto-me só nesta dor,
E realmente estou,
Quando começo a escutar vozes.

Quantas histórias estas pedras querem contar.
Dizer a estes homens que o tempo de matar já passou,
Foi na época do ouro, da escravidão, do café.
Hoje, se mata de outra forma,
É sem sentir amor, compaixão, ou fé,
É sem dar àquele que nos pede,
Um afago e um cafuné.


A música continua,
E as pessoas continuam a passar,
Simples transeuntes, sem se importar,
Com as histórias que as pedras têm para contar.

Acalmo-me,
E compreendo que sou só eu que as escuto desta forma,
Não existe compartilhar, nem bem estar,
Apenas uma solidão enorme,
Maior do que o mundo,
E sem resquício de ser fome,
É ausência mesmo,
Daquelas que nem se sente,
Para não se acostumar com o disforme.

Estar só, simplesmente,
Em meio ao Largo do Rosário,
E vislumbrar que apesar de tudo,
O caminho que ainda se tem a andar é longo e uniforme.
E nele me defrontarei com várias dores iguais a estas.
Por isso, é preciso soltá-las ao vento como se fossem balões de gás,
Para que o seu colorido possa ao menos simular uma dança descompassada,
Um simulacro de festa no ar,
E simbolizar uma tristeza que têm certeza que a alegria é o seu lugar...

quinta-feira, agosto 17, 2006

Mais poesia... esta vinda direto da Bahia...

HOMENAGEM

Um barco encalhado,
Mas para que serve, se não pode mais navegar?
Guardar entulhos, marcar lugar na areia,
E acima de tudo mostrar a coragem de quem já enfrentou o mar.
Lembranças que todo barco encalhado adora contar.
Basta falar oi e ele logo fala da viagem que fez,
E demorou um mês,
Um para ir e outro para voltar.
Saudades?
Ele resmungou que não,
Afinal, o único sentimento que ele nutre é pelo mar,
E agora que está distante,
Não sabe nem falar de saudade, amor, tempo.
Só o tempo é capaz de sentir,
Cada vez que seu casco pensa em desistir,
Partir, deixar de ser depósito e ser consumido pelo fogo...
Fogo?
É fogo, ele responde,
Já que a minha vida foi para a água que a minha morte seja para o fogo,
Boa lógica,
E eu que achei que ele era apenas um velho barco sem propósito,
Um simples depósito.

quarta-feira, agosto 16, 2006

Mais poesia...

NATUREZA QUASE MORTA

As flores secas do seu cerrado,
Trazem o agrado,
Da natureza que não é morta,
Mas assim se comporta,
Quando o verde latente,
Se ausenta, sem nota.
Sem ele presente,
Todas as outras cores, quase sempre inconsistentes,
Dão seu tom à tua secura,
Trazendo a sensação de vida,
Ao que antes parecia ser só amargura.
Mas estas flores não combinam,
Quando o verde se ilumina,
Pois a água trouxe o alívio,
Para o clima que te anima.
O encontro do verde puro,
Com as flores desterradas,
Dão o apuro do que procuro,
Que não está nem na tua alvorada,
Nem no teu escuro,
Mas na beira do desejo,
Que habita o meu querer,
Um pouco inseguro,
Sem saber ser flor morta, nem verde vivo,
Preso ainda entre a derrota e o improviso.

segunda-feira, agosto 14, 2006

TRISTEZA...

Afinal, o que é tristeza?
É não ter comida na mesa?
É não ter cama para a sesta?
É ser só e não ter com quem dividir a sobremesa?

Para mim, tristeza não é nada disso.
É simplesmente não se contentar com a sua beleza,
Com a pureza que trazes da infância e que geralmente te ensinam que é fraqueza.

Não ter comida na mesa, é fome, miséria, não tristeza,
Não ter cama para a sesta é fazer da preguiça uma incerteza e
Ser só e não ter com quem dividir a sobremesa,
Para uns é sorte, para outros é ter doce para a semana inteira...

A tristeza só aparece realmente, quando deixamos nos convencer,
Que é melhor se fôssemos de outro jeito, outra cor, outro meio.

Tristeza é não ter coragem de olhar no espelho,
E reconhecer nos olhos que te confrontam a mesma dor do medo...
Quando o medo não está presente,
É porque a tristeza já tomou conta da dor latente,
De seres triste e ausente,
Cabisbaixo e renitente,
Voraz e sem dente...

domingo, agosto 13, 2006

Agora uma poesia...

CARNAVAL SEM HORA


O meu carnaval,
Não tem hora para inaugurar,
Atropela até mesmo o inverno,
Quando encontra o seu lugar.

A festa do corpo
Começa com o abraço,
Continua no embaraço,
Que só finda quando em ti me satisfaço.

Caio sem saber,
Na rede do fenecer,
Me enredo, me entrego,
Ao te celebrar, sem perceber.

Me aquieto,
Encontro na calada,
A sombra do teu prospecto,
A me seguir, com ares de indiscreto,
Pelos labirintos incertos
Do festejar e florescer.

A festa continua,
Só termina quando a tua,
Inesperada partitura,
Me mostra a atadura,
Estampada no teu sofrer,
Sem nenhuma amargura.

Finda o carnaval,
Como se fosse o ato final,
Uma incontinência carnal,
Do meu apreço e do teu sinal,
A emendar o confete,
Sem bem nem mal,
Apenas com a euforia,
De uma festa sem igual.

sexta-feira, agosto 11, 2006

O reencontro do medo com o olhar...

... Quando o olhar reencontra o medo. É este o momento que quero descrever. Momento, sensação, danação. Ou seja lá mais o que isso quer dizer. Acontece quando menos se espera. Retorna quando mais se esmera. É assim que a vida passa na avenida sem que você possa pedir um lugar de destaque na lida. Mas vamos voltar ao momento. Oportuno, completo de desatino, repleto e em desalinho. Quente e forte como um corte no meu destino. Mas é somente o medo que pode reconhecer o olhar. O olhar perde todo o sentido e parece ser a primeira vez que enfrenta o destemido. Acaba o encontro quando os olhos resolvem fechar e o medo, bem este, a gente bem sabe para onde vai. Sai correndo a procurar outro olhar. De preferência um que esteja despreparado e desacostumado a enxergar. Aí é o medo que ensina o verdadeiro sentido do olhar. Não é ver. Nem tampouco vislumbrar. É simplesmente ter a certeza de que não há nada que se possa mudar...

quinta-feira, agosto 10, 2006

Em tempos de eleição... Reflexões sobre Brasília...

Para quem ainda não sabe... Desde que reiniciei a escrever, quando visito uma cidade, escrevo quase um diálogo mostrando o que aquele lugar me ensinou... o que ele me disse... Brasília fez parte da minha vida por alguns meses e foi neste tempo que fiz o texto abaixo... em tempos de eleição acho que ele cai bem...

FLEXIBILIDADE

Reflexões sobre Brasília


O teu céu sem fim é a primeira coisa que salta aos olhos daqueles que em ti adentram, seja pela terra, seja pelo ar, pois é ele que dá a exata quadratura do teu firmamento.

Escolhida para seres a cidade modelo, dificilmente se aproximam de ti aqueles que querem apenas conhecer o teu cheiro. Quando não se trata propriamente de trabalho, são motivos outros que fazem você ser visitada, dificilmente se resume à curiosidade pura e desinteressada.

Meu primeiro contato contigo data de um tempo que nem me lembro direito e o motivo que me levou faz parte deste mesmo momento, mas o que não me sai do pensamento é a lembrança da surpresa por avistar na morada da justiça, perdida e pequena em meio a um vasto campo que misturava verde e concreto - ambos aparentemente inexistentes e incorretos - o mesmo sol seco a brilhar no teu céu, que de tão grande e reto, adquiriu para mim, ares de incoerente e indiscreto.

Depois disso, tu aparecias nos noticiários, mas sempre no papel secundário, mero palco das disputas sangrentas e por vezes hilárias, acontecimentos que marcam a essência deste país, ainda perdido entre o cerrado que te rodeia e sem saber por onde escapar da sua própria ambigüidade, único traço que realmente o margeia.

Em um certo dia da minha vida me vi muito próxima de ti. Tão próxima a ponto de pensar na possibilidade de estabelecer morada na tua planície. Mas o tempo trouxe a alvorada e com ela a tua marca errante - até então para mim desconhecida - se fez presente, a flexibilidade que te habita e torna tudo possivelmente mutante fez do que era para ser só de um jeito, após um simples remendo, ser ajustado ao o que meu olhar necessitava naquele momento.

Ver-te algumas vezes, por alguns meses e assim ir te conhecendo aos poucos, sem pressa ou urgência, deixando o atropelo para outras paragens e conseqüências.

A partir de então, foram várias idas e vindas, na primeira, ao adentrar na tua catedral e sentir o sol travestido de azul pulsando o corpo nu dos anjos que a adornam, imagens visivelmente escorregando do céu a encostar-se a terra, me veio novamente à idéia da flexibilidade, única a tornar possível que se perca a angelitude para vislumbrar a latitude da humanidade e assim fazer desta tua terra seca o celeiro do pensamento das transformações necessárias ao país que te acolhe.

Com o passar do tempo, deixei de sentir o desassossego que sempre me aparecia quando era preciso entender a lógica ilógica dos teus endereços para eu me encontrar nas quadras deitadas nas suas asas. Mas foi quando eu não tentei mais te ver com o olhar acostumado que eu trazia de outras cidades é que eu pude vislumbrar a sua inaparente mobilidade travestida de letargia.

Comecei a me aventurar fora dos limites da tua paisagem para mim segura - a Esplanada dos Ministérios, onde os espelhos, o concreto e água dão a sensação profunda do seu isolamento e da sua mágoa - e a olhar os arredores até visitar uma pequena cidade conhecida pela Cavalhada, símbolo do seu folclore.

A pequena ousadia de sair para conferir a natureza que te cerca, me fez perder o medo de ti e avançar no teu parque, num final de tarde, para sentir teu aconchego. E o senti, juntamente com a lua cheia que surgiu no teu céu, que desta vez não me pareceu mais indiscreto nem incoerente, mas sim concreto e ausente a me explicar à necessidade da flexibilidade para dar à sua juventude a experiência compatível com a tua inesperada amplitude.

Talvez porque não tenha sido só um contato, talvez por você abrigar na tua terra a abundância do futuro que eu espero, sinto que esta marca que te habita - a tal da flexibilidade - não apenas toca o meu olhar, mas adentra na minha forma, me tornando um pouco parte da tua paisagem e por mais distante que eu esteja, vislumbro no meu desejo o ensejo de deixar de ser um corpo para me misturar em meio à tua terra seca, em meio ao teu céu cativante, para cair como uma lágrima, solitária e abundante, perdida e errante, imparcial e relutante, para nunca deixá-la, cara amiga Brasília, pois abrigo a minha esperança na lua que ilumina a tua madrugada, ainda carente de afago e sem semblante.





terça-feira, agosto 08, 2006

AZUL...SIMPLESMENTE AZUL...




... queria pintar o mundo de azul para te dar o encontro. Queria dizer o impronunciável para desfazer o pranto. Queria te dar a leveza da pluma como quem simplesmente carrega em si, sem nem mesmo o perceber, a esperança de um santo. Mas a dor ainda habita em mim. Certo que de forma mais perene. Quase como uma imagem sem contorno. Mas insistente e premente como um abandono.

O azul que eu pintaria o mundo seria igual ao do céu. Mais do que do mar. Azul turquesa, dizem os que conhecem as cores. Para mim, é apenas o azul celeste - brilhante e pleno como o manto da vida no agreste. Sua tonalidade seria capaz de te dar toda a minha vida, com as minhas lembranças e as minhas pobres crianças a embalar nas suas vestes um pouco da sua ainda apagada infância.

Queria ser capaz de desmanchar as tuas dores. Como se fossem solúveis nas lágrimas dos meus amores. Como se pudessem simplesmente dizer para que servem as flores. Como se assim eu pudesse finalmente descobrir o que carrego dentro do meu ventre, fora os meus próprios horrores.

Mas esse azul de que falo ainda é diferente do azul do céu. Pois ele somente pertence a quem dele se aproxima sem o véu. Só por isso ele é capaz de dar o encontro. Só por isso a ele é permitido a vida sem canto. Somente assim ele poderá te pintar o encanto, mesmo com a sua pobre sina vazia, de ser só sem nenhum acalanto.

Desejo ter a ti como um dia você me desejou. Desejo que eu possa ser simplesmente leve e perene como o teu próprio amor. Desejo que nós possamos nos perdoar, apesar da nossa grande e quase incalculável dor. Desejo para ti a felicidade que pensei existir no nosso amor. Desejo que o azul possa nos aproximar e nos fazer sair deste torpor. Desejo que deixemos para trás nossas carcaças de ferro e possamos entoar a todos a divina cor do nosso nublado sentimento. Sem lágrima e sem lamento. Nós a sós como se fôssemos apenas um, neste breve e inesperado momento...

segunda-feira, agosto 07, 2006

Última parte... Conto Trinta Anos...

3 - A estrela

Até o final da tarde, Eu não conseguiu tirar os olhos do Outro que vez ou outra, insistia em permanecer vidrado olhando para os seus olhos. No caminho de volta para casa, Eu ainda pôde sentir a presença do Outro durante todo o percurso, mas diferente das outras vezes, a imagem do Outro não estava refletida em nenhum lugar, era uma simples presença.

Quando chegou em casa e verificou a secretária eletrônica sem nenhuma mensagem, a pergunta do Outro apareceu nítida na sua mente – Quem sou eu? – e por um momento Eu pensou em enlouquecer e perder todo o sentido da realidade, em se distanciar de tal forma de toda aquela vida que não era a dele e em iniciar uma nova identidade, fazer tudo aquilo que ele havia se negado há tanto tempo, em acordar cedo para ouvir os sons dos pássaros, ir para a Índia sem se preocupar com a passagem de volta, sentir o cheiro da natureza com o seu corpo e principalmente em se dar para alguém como nunca havia feito. A inexistência do amor. Das suas dores, esta era a que mais doía e a que mais exaltava, como um estandarte.

Lembrou imediatamente de um poema do Paulo Leminski que diz “O homem com uma dor é muito mais elegante, anda assim de lado, como se chegasse atrasado, caminha mais adiante, carrega o peso da dor como se portasse medalhas” e pensou no quanto a sua dor havia se transformado em seu vício. A dor da solidão.

Nisso, o Outro surgiu, não mais como uma imagem intrusa em um dos espelhos ou janelas da casa, mas bem na sua frente, carne, pele, cheiro. O sorriso do Outro, a face do Outro e o que mais o enternecia e o assustava, a voz do Outro:

- Acho que agora nós podemos conversar. Você já conseguiu pensar em algumas coisas importantes para mim, ou seja, para você, ou melhor, para nós dois. E o que vem a seguir é o que determinará o seu futuro, ou seja, o meu passado, ou melhor a nossa vida – O Outro disse isso e apesar da repetição, Eu ficou paralisado tentando compreender o que viria a seguir.

Foi quando o Outro o surpreendeu e o tirou do seu estado catatônico apenas sussurrando uma canção infantil. Num primeiro momento, Eu não reconheceu a canção e apenas ficou encantado com a melodia e a letra que dizia coisas bonitas sobre o amor de uma criança e uma estrela, sua amiga imaginária. Foi apenas quando o Outro entoou “e éramos tão distantes que um dia você se afastou tanto que nunca mais me encontrou” que Eu se lembrou que o autor daquela canção era ele mesmo. Ao se deparar com sua própria criação, percebeu que lágrimas desciam incontrolavelmente de seu rosto enquanto o Outro perguntou:

- Porque você a abandonou? Ela esteve sempre presente na sua vida, mesmo nos dias que as nuvens a encobriam e você não conseguia vê-la, ela estava lá, aguardando a oportunidade de estar com você.

Eu, respondeu, num fio de voz:

- Eu nunca imaginei que ela realmente existisse... achava que era apenas ilusão do meu coração de criança. Como você a conheceu? - O Outro olhou fixamente para os olhos de Eu e disse:

- Foi ela que me trouxe aqui, para te ajudar a perceber o quanto é necessário acreditar nas suas intuições e principalmente soltar o seu coração. Você não imagina como foi a minha vida até aqui, é uma solidão sem fim, tanta tristeza, tanta dor, tanto abandono e quanto mais me aproximo da sua idade percebo que enquanto você não confiar no seu amor, nenhum de nós vai resistir, pois não conseguirei mais ser você, nem você suportará a dor de ser eu.

- Confiar como? – disse Eu – nem consigo entender o que sinto, como vou confiar em algo que não compreendo.

- Este é exatamente o seu problema, você não precisa compreender com a razão, não é sempre o cérebro que consegue entender as coisas mais importantes da vida, mas sim o coração. Tenha a sabedoria de ouvir o seu coração, mesmo quando ele lhe parecer errado, o escute, preste atenção nele – enquanto o Outro lhe dizia isso, Eu começou a sentir cada vez mais seu órgão vital batendo, ele batia com tanta força, tanta precisão que Eu pensou que fosse explodir e foi exatamente neste instante que uma estrela, saiu do coração do Outro e se alojou no coração de Eu, só bastou isso para que o Outro se desmaterializasse na sua frente e lhe dissesse num sussurro – Agora estamos todos juntos... viva a sua vida como se fosse uma estrela, tenha a percepção do infinito, mas escute sempre o seu coração... Faça a nossa vida diferente do que a que eu vivi...

Eu começou a se sentir tão leve, tão impreciso e principalmente, tão louco que não se importou com o que os outros iriam dizer quando desceu as escadas do prédio e correu para o meio da rua, neste momento, uma forte chuva desabou sobre a cidade e Eu passou a dançar no meio da rua, só, sorridente, com uma estrela a dançar nos seus lábios.










domingo, agosto 06, 2006

Segunda parte... Conto Trinta Anos...

2 - O Esquecimento

Num repente tudo se foi. A música, a imagem e até mesmo as lembranças da noite anterior. Quando Eu voltou a si, percebeu que não se recordava de nada do que tinha acontecido naquela manhã, nem mesmo de como havia saído da cama e caminhado até o banheiro. Olhou para o relógio e percebeu que estava muito atrasado, o que fez com que cumprisse o ritual matutino mais rápido do que o costumeiro, esquecendo o que não conseguia se lembrar.

Quando reparou melhor, chegou a achar graça do seu próprio pensamento – esquecer do que não conseguia se lembrar. Ora, se esquecer do que não havia se lembrado na verdade era deixar de tentar lembrar o que já tinha sido esquecido, tudo isso nada mais era do que deixar a lembrança que já tinha sido condenada ao esquecimento, nele permanecer. Quem era ele para recuperá-la? Esta questão começou a assustá-lo.

Certamente esta lembrança havia sido objeto de uma justa avaliação e por não conter as qualidades daquelas que devem ser guardadas, foi instantaneamente liquidada. Pronto, não pensaria mais sobre isso, pensou – ainda mais uma vez – antes de tomar seu café preto.

Eu trabalhava em um banco e apesar de nunca ter se dado muito bem com números, podia ser considerado um bom profissional. Digo considerado, pois é o que ele era para os outros, já que a sua análise pessoal era bem mais dura, para ele, era simplesmente um medíocre.

Medíocre porque em momento nenhum da sua vida, Eu havia pensado seriamente sobre o que iria fazer ... as situações foram acontecendo e assim Eu não poderia nem mesmo precisar de que forma havia se tornado um bancário. Na verdade, até aquele momento, ele nunca havia pensado nisso e isso o deixou inquieto.

Logo após o almoço, Eu se deparou com o Outro novamente, desta vez, no reflexo da tela do computador. Os olhos do Outro mergulharam fundo nos olhos de Eu e foi só depois de alguns segundos que Eu percebeu o que estava acontecendo e se lembrou imediatamente da noite anterior, daquela manhã e pensou – Afinal, quem é o Outro?

Ele não precisou nem mesmo dizer estas palavras para que o Outro respondesse: - Você bem sabe quem eu sou, mas você também sabe que esta não é a pergunta certa... – Eu retrucou em pensamento: - Que pergunta é esta? E o Outro murmurou – Quem é você ?, ao dizer tais palavras a imagem foi sumindo e permaneceram apenas os olhos do Outro, olhando atentamente para os olhos de Eu, dupla de olhos ligadas pelo fascínio do impossível, tentando compreender como poderiam serem a mesma pessoa e ao mesmo tempo tão distantes, tão diferentes, tão imprecisos...
CONTINUA...

sábado, agosto 05, 2006

Mais um conto... Trinta anos...

TRINTA ANOS

Tive a idéia de escrever esta história quando tinha 28 anos. Não sei porque me pareceu que a passagem da idade de 29 para 30 anos deveria ser algo mágico. No início, achei que poderia ser até um romance, mas o que geralmente acontece quando o assunto é escrever, sou traída pela minha própria inspiração e quando vi a história tinha terminado em algumas páginas.
Aceitei de bom grado, afinal, não sou mesmo eu que controlo estas coisas. Agora acho até divertido como nomeei os personagens, como se a torná-los um pouco como cada um de nós, sem identidade e essência definidas.
Relendo, percebo que ele é muito mais autobiográfico do que imaginava na época e que em nenhum momento as palavras levavam para o desfecho que surpreendentemente surgiu. Hoje com 31 anos - prestes a completar 32-, posso dizer que de alguma forma eu estava certa. Essa passagem é realmente mágica... acredito que para cada um de uma forma diferente, mas sem perder o frescor e a fantasia que habita os recomeços e seus tropeços...
Como ele é um pouco grande... vou publicá-lo em três partes... hoje vai a primeira...
1 - O REENCONTRO

A noite anterior havia sido no mínimo estranha, pensou. Até o momento não havia compreendido exatamente o que ocorrera. Desde muito, o fato de completar trinta anos era algo que o fascinava, mas nunca havia imaginado que aquilo pudesse acontecer. Quando fechou os olhos, só conseguiu vislumbrar imagens desconexas sem lógica alguma. Afinal, o que realmente acontecera? Fora um sonho ou um pesadelo? Ainda não sabia ao certo. A sua única certeza era que certamente o que ocorrera era único e ao mesmo tempo inexistente e isso era o que mais o intrigava.

Enquanto todos estes pensamentos o cercavam, começou a ouvir uma melodia distante, repetindo insistentemente um único trecho musical. No início aquilo não lhe chamou atenção, pois a música combinava naturalmente com o ambiente, mas depois da oitava ou décima repetição, teve um espasmo. Era a mesma música que o Outro havia tocado para ele na noite anterior, antes da descoberta. Num salto, Eu saiu da cama e abriu as janelas, como se a procurar de onde vinha aquele som. Depois de algum tempo desistiu da busca inútil. Caminhou até o banheiro e foi precisamente neste momento que se deparou com o Outro novamente, só que desta vez ele estava do outro lado do espelho. Imediatamente descobriu que a música que tanto o havia atormentado antes, vinha daquela imagem.

O esboço refletido era ao mesmo tempo estranho e familiar e por incrível que isto pudesse parecer, estas qualidades se misturavam tão perfeitamente que Eu chegou a ficar emocionado com o que viu. O tempo escarrado em um homem sem rosto. Um gesto sem futuro. Uma vida sem passado. Era uma estranha forma de pertencer ao vazio. Foi quando a melodia parou por completo que tudo começou.

E o tudo poderia ser entendido como o nada nos minutos que antecederam a real fantasia, quando subitamente a voz do Outro entrecortou o silêncio:

- Estava há muito querendo te conhecer e agora não sei muito bem o que achar... Na verdade, te esperava um pouco mais jovem, mais fresco... – e parou súbito como procurando a palavra certa e acabou resmungando – na verdade, te esperava mais feliz.

Eu tentou se recuperar do susto e parecer casual quando falou:

- Mais feliz? Se você é realmente quem disse que é, certamente sabe tudo a meu respeito e deve saber inclusive os motivos do meu estado de ânimo – e assim que terminou a frase, abriu a torneira e lavou o rosto, antes de fitar novamente a face do Outro no espelho. Porém, quando o fez, deu com o seu próprio reflexo, a sua própria cara, com aparência cansada e triste. Sim, conseguiu perceber a névoa por trás do seu olhar, a dor que o Outro prontamente reconheceu e resolveu concordar, certamente poderia ser mais feliz.

Mas afinal, o que era felicidade, senão uma ilusão, feita de momentos frágeis que quando menos se espera fogem, desaparecem, sem nem deixar rastros. Afinal, não é ela que sempre abandona seus hospedeiros- sem aviso, na calada da noite - bem quando ele começa a se acostumar com ela. Repentinamente, o deixa novamente humano. Não, pensou novamente, certamente estava melhor assim, talvez um pouco triste, mas real.

Neste momento, Eu passou a se recordar de tudo o que o Outro lhe havia dito: que eles eram a mesma pessoa, só haviam vivido a vida ao contrário, ou seja, enquanto um nascia o outro rejuvenescia e exatamente quando ele completou trinta anos – o que tinha acontecido na noite anterior – se iniciou um prazo para ambos voltassem a ser a mesma pessoa, senão um deles precisaria deixar de existir para o outro permanecer.

Apesar de despejar toda esta história maluca, o Outro não disse exatamente de que lugar da galáxia vinha, nem tampouco para onde ia, como também não lhe explicou exatamente como se dera o ocorrido, disse apenas o tempo que restava para ambos tentarem se acertar: um dia. Era esse espaço breve de tempo que restava para ambos coexistirem, depois disso seria o inimaginável.

O Outro não havia lhe contado detalhes de como seriam as coisas se eles não conseguissem. Será que uma parte de um influenciaria o outro? E quando ambos concordassem com uma opinião, será que as palavras que a expressariam sairão de qual boca? Era tudo muito estranho, pensou novamente Eu. Porém, apesar de toda a esquisitice, tudo isso havia dado um certo alento à sua solidão, afinal, não seria mais sozinho, teria alguém para lhe completar, nem que isso importasse em dividir o mesmo corpo, a mesma alma, o mesmo intelecto.

De repente, o Outro apareceu novamente, desta vez, não no espelho, mas no reflexo da sua imagem na janela e estranhamente lhe sorriu, um sorrisso leve, claro, quase maroto e que combinou perfeitamente com palavras que vieram a seguir:

- Está um pouco mais calmo? Você precisa se lembrar que não precisa ter vergonha de mim, afinal, eu sei exatamente o que você pensa, o que faz, do que tem medo, do que gosta... só precisamos ser mais equilibrados para conseguirmos nos unir até amanhã...
CONTINUA...

quinta-feira, agosto 03, 2006

Seis cantos contra a guerra...

Essas poesias são do meu tio - Khaled Ghoubar - e acho que falam por si só...

Seis cantos contra a guerra

1/6

Quando ansiava pela paz,
me anunciaram a guerra.

Já gastei no passado quase todo o meu ódio,
hoje eu o conservo em pequenas garrafas,
como perfume.

Bateram à minha porta
com armas de fogo e armas brancas,
sem nenhuma bandeira branca...

Disse-lhes que eu sai
que a minha alma foi penar
onde as mães penam seus filhos mortos,
onde os filhos perdidos procuram suas mães,
onde o sangue não alimenta nada.

Disse-lhes que eu ali
era só um corpo inútil, desalmado
e que poderiam levá-lo para a guerra,
para aumentar as penas
das mães e dos filhos,
ambos perdidos nos escombros
que produzirei.

Me carregaram em regozijo,
me carregaram morto-vivo,
eu que só queria parar
para chorar todos os mortos.



Khaled Ghoubar 19/07 /2006

2/6

Já viram a mãe muçulmana
no quadro de Guernica?

Já identificaram a criança judia
no quadro de Guernica?

Já sentiram o cheiro
de carne humana dilacerada,
soterrada, carbonizada?
Dizem que começa com um cheiro doce...
que depois atrai os abutres!

Guernica, de guerreiros carniceiros,
que escória é essa gente
que chamamos de humanos?

Não são judeus, nem são muçulmanos!



Khaled Ghoubar 19/07/2006


3/6

Antes que sobre só estupidez
e rancor dilacerante,
faço meu testamento de fé:

1. De nada adianta matar o corpo
se a alma é imortal;
2. De nada adianta castigar o mal com o mal
que nunca nascerá o bem;
3. De nada adianta me ofender,
serão sempre injustos;
4. De nada adianta queimar minha casa,
sei reconstrui-la com cinzas;
5. De nada adianta me expulsar,
a memória dos meus pés me trará de volta;
6. De nada adianta me acusar,
eu sou uma peça de dominó;
7. Eu só queria a ingenuidade honesta
de uma paz definitiva;
8. Não quero flores,
choros e tiros para o ar,
só quero o silêncio dos campos arados;
9. Eu quero que eles atravessem a fronteira
para apararem no peito
as balas que eles desferiram;
10. Não haverá nem céu, nem inferno,
só um eterno murmúrio de lamento.



Khaled Ghoubar 19/07/2006

4/6

Não vai dar certo!

Eles gostam de fogo
e eu do vento...

Eles gostam de brincar de policial
e me tratarem como bandido...

Eles não querem ver
que “beith” muçulmano
é o mesmo “beith” judeu...

Todas as mortes para eles
são muito divertidas,
do outro lado da fronteira...

O TodoPoderoso
os castigará com a simetria,
eles que são ignorantes
da Geometria Divina,
são filhos do Caos.

Eu sou simplesmente
um homem preocupado,
ajudando os salmões
a subirem os rios.

Khaled Ghoubar 19/07/2006

5/6

Enquanto a guerra não acaba,
no Vale do Anhangabau
o PCC montou um telão
que de 5 em 5 minutos
dá o escore da guerra,
enquanto escrotos fazem apostas.

Quantas mortes faz uma vitória?
Quantas vitórias faz um campeão?
Quem é o demente juiz
desse jogo macabro e absurdo?

Khaled Ghoubar 19 /07/ 2006

6/6

Antes que tudo volte ao normal,
como é normal...

Antes que as orações
sepultem para sempre
os corações expostos
pela bala ou pela dor.

Antes que as fronteiras se abram
para recolher e trocar seus mortos.

Antes que uma mãe
em desespero grite em hebreu
e uma criança em pânico responda em árabe.

Antes que se esqueçam da barbárie
que é lavar a Terra Santa
dos muçulmanos e judeus
com o sangue de inocentes iludidos,
enlouquecidos, e enraivecidos,
judeus e muçulmanos.

Antes que se esqueçam
do enxofre e da prata
nessas terras enterrados.

Antes que se esqueçam...


Khaled Ghoubar 19/ 07/ 2006

terça-feira, agosto 01, 2006

Mais poesia... esta ainda a espera de um título... aceito sugestões...

Por ti espero,
Não sei se por simples esmero,
Ou por vontade pura,
Desejo sincero.

A primeira vez que te vi,
Foi tão rápida, que nem percebi,
Quando comecei a te sentir,
Tu foste embora, sem nem se despedir.

Passei anos te perseguindo,
Tentando reencontrar o frescor do teu olhar,
No mar, na terra e no ar,
Quase já tinha desistido,
Quando ouvi a tua voz a me chamar...

Primeiro um sussurro,
Depois, um suspiro impuro,
Quando ouvi o grito,
Simples e obscuro,
Percebi o teu estado aflito e inoportuno.

A visão foi mais uma vez muito rápida,
Tu fugiste novamente de mim,
Sem nem se importar,
Com o meu grito de socorro,
A implorar a estada sem fim,
Só, no morro.

Ainda te aguardo, te espero,
Suspiro e desespero,
Mas não desisto do seu mistério,
Atemporal e deletério.

Caro amor,
Barato sentimento,
Furor do meu receio,
Inesperado e correto,
A estampar seu cheiro,
No recheio do meu anseio,
Recém-desperto,
Preso no meu caminhar,
Sempre deserto, a te observar...
Sem nunca perder a necessidade de em ti me reencontrar...