quinta-feira, setembro 20, 2007

Entrada Proibida por Adriana Falcão

A sala do coração tem muitas janelas e duas portas, a que dá pra dentro e a que dá pra fora. A que dá pra dentro está sempre aberta. A que dá pra fora vive trancada.

Espalhadas pela sala, as notícias do jornal de hoje, a bobagem dita ontem, o Natal passado, o retrasado, a mula-sem-cabeça, o Banco Imobiliário, uma febre, um sarampo, a enchente, o cometa Halley, um São João, um jeep amarelo, a foto do casamento, o nascimento do filho, o velório da vó, a festa do tetra, a desesperança do mundo, a expectativa do próximo fim de semana e outra tralhas, cada qual lá, com sua importância, acumulando poeira. Talvez se sintam felizes. Quem sabe?

O coração tem muitos quartos. No primeiro, logo o da frente, algumas lembranças dormem, umas riem, umas mentem, outras doem. O bolo de aniversário dos seus oito anos, não o dos sete nem o dos nove, o olhar azul da vó quando entrava na ambulância, o primeiro beijo (foi na escada?), a primeira mão que desceu mais um pouquinho, o refrão daquela música que um dia embalou o final do seu namoro e nunca, nunca mais vai tocar no rádio, a primeira vez que, sem ninguém explicar, você juntou o nome à pessoa, e a palavra orgasmo (tirada de alguma matéria de revista) legendou o seu pensamento, uma cama laqueada com um estrado tão atento que, no melhor da história, por piada ou por recato, quase sempre desabava, aquele sapatinho de bebê que só sabe a cor exata e o exato pompom, o dia da derrota do seu candidato, da sua ingenuidade, da sua felicidade, da sua ignorância, da importância daquela pessoa, daquela outra, e daquela, especialmente, que um dia já foi tanto, tanto, tanto.

O segundo quarto é meio escuro e faz tempo que não recebe um vento. É ali que estão grudados, em caixas, caixinhas, caixonas, envelopes, sacolas, pelos cantos, uns entulhos e uns tesouros. Quase ninguém entrou nesse quarto, além de você, e mesmo você só entra lá muito de vez em quando. Imagine só que perigo deparar-se, assim de repente, com aquela canção de ninar, um lápis de bandeirinha mordido na ponta, o apontador verde, o estojo, a máquina de escrever do escritório do seu pai, uma barraca colorida de praia, o botão número três do elevador de um prédio antigo, o nome que você fazia com letras de macarrão ou o formato exato da boca do dono desse nome, a primeira desilusão, o primeiro desapego, a primeira devassa, uma tarde, uma praia, uma certeza insistente, a vontade de que chegue amanhã, vai, amanhã, chega logo, amanhã vai ser uma beleza.

O terceiro quarto permanece fechado de dia e só abre certas noites em alguns sonhos. Lá estão, entre outras tantas, coisas que não fazem nenhum sentido aparente, pedaços, cheiros, fitas, mofo, uma bacia de lata, um compacto simples, um cinzeiro laranja, uma mentira, uma vergonha, um medo, um choro engolido, detalhes que nem você sabia que existiam ainda, violentos assim, se é que eles ainda existem (o coração às vezes também inventa um pouco).

O último quarto, no fim do corredor, hoje em dia é só um depósito. Um dragão imenso, parado na porta, tenta parecer assustador, uma vez que serve de vigia. Ou pensa que serve. Mal sabe ele que foi tirado da fachada de um restaurante chinês, ou, na melhor das hipóteses, de uma página de um livro de arte. Ninguém sabe até hoje o que tem dentro desse quarto, nem você, nem a sua mãe, nem o seu psiquiatra. Enquanto o dragão fica lá convicto de que você morre de medo dele, você continua convencido de que só não entra ali pra não ter o trabalho de matar o coitado.

No banheiro antigo e grande, tem uma banheira que já foi oceano de bonecos, uma cortina de plástico, alguns decalques (meio tortos) descascados nos azulejos, um bidê muito importante e uma mania de comer pasta de dente escondido dos outros.

Um biscoito, que você mordia cuidadosamente pelas bordas para preservar intacta a figura que tinha dentro (era uma árvore, parece), está guardado na cozinha do coração junto com o cheiro de feijão da sua avó e a esperança de que estivessem fritando batatas.

O quintal está interditado. É campo minado. É um perigo.

Deve ser atávico. Ninguém precisa ter tido um quintal na vida pra saber a alegria e a tristeza que podem causar uma cerca, um portão, uma pedra, uma lagarta. Nunca visite o quintal do seu coração, não corra esse risco, não cometa essa loucura, a não ser em casos de extrema necessidade ou em dias de vento forte, raios, relâmpagos e muitas trovoadas. Se você por acaso der de cara com você lá, brincando, bem contente, a sua vida pode virar uma calamidade.

segunda-feira, setembro 17, 2007

Flor

Porque ele não saberia mais esperar. Era por isso que mais uma vez ele ligou para ela. Como sempre fazia. A voz muda do outro lado da linha. Respiração seca e curta. Vida longa. Ele disse o que estava dentro da sua garganta. Palavras que cortaram toda a sua inaparente sofreguidão. Adorava esta palavra. Era da medida da sua dor e do seu gozo. Desligou o telefone sem nem mesmo dar a chance dela retrucar. Ele já sabia que ela não o faria. Mesmo assim não deu tempo algum. Corte profundo. Andou pela rua a esmo. A imagem da sua mãe a olhar o telefone não saia da sua cabeça. Entrou num cinema para parar de pensar. Já tinha cansado de tentar entendê-la. Não mais o faria.

Saiu do cinema e encontrou uma flor no chão. Pisada e seca. Reconheceu nela o seu coração. Ligou de novo e desta vez a xingou. E levou a flor para a casa. Ver se ela conseguiria fazer algo com ela. Se conseguisse, talvez desse também o seu coração para ela. Talvez...

sexta-feira, setembro 14, 2007

Navio

desafio

fio posto no calafrio

leve e fino

dormente navio



acordo

não sonho

durmo

sem olhar

acho e não procuro

a sua mão e

o meu luar

segunda-feira, setembro 10, 2007

amor às avessas

tô sentindo um amor às avessas... como se me corroesse por dentro, tirasse as minhas veias, o meu mofo... quase me partindo ao meio para poder brincar de ser amor novo... me procura no momento do encantamento e depois se deposita em mim como se fosse uma concha perdida de mar. aconchego e desconforto. música calma e um atordoamento solto. apalpo esse amor e sei que ele já vêm embaralhado, sujo, cheio de areia do cais. estendo a minha vida e ele ainda não sabe o que vê. amor, amorzinho... cadê você??

segunda-feira, setembro 03, 2007

Jantar por Ana Miranda

A mesa está posta, eu mesma dispus os pratos, as taças, os talheres, os guardanapos para os lábios puros, resignada a fazer parte de um mundo verdadeiro, eu o espero para jantar há anos, o desejo de jantar com ele cresceu, foi tomando meu peito, pois tenho agora vontade de gritar, O que vais comer? logo saberás o prato principal desta noite, perfurmada desamparada solitária palpitante, vestido negro, luva negra apenas na mão esquerda, colar de pérolas, minhas almas se debatem dentro de mim e se arrastam atrás de mim como um rabo peludo, vou à janela, olho a rua, acendo um cigarro, fumo, Tudo está à tua espera, fumaça, cabelos presos, ando arrastando na cauda meu coração inconsciente, úmido, a campainha toca, oito horas, abro a porta, seus olhos marítimos são o corpo mostrando o espírito, um espelho surpreendente e atrás dele um homem, os dois embriagados de algo que não sei, Trouxe um amigo, ele diz, ao fechar a porta sinto uma faca destrinchando meu corpo, aquele amigo atrás dele como sua sombra e salvação, um pedaço de mim em cada parte e eu tão desamparada, um gesto qualquer, Encontro-me distanciada, eles bebem uísque, parecem fazer parte do mundo real, aos poucos seus corpos e seus rostos se iluminam para mim, mas ainda há sombras, nove horas, corpos vivos e verdadeiros de homens, por que ele trouxe alguém, terá medo de mim? suas palavras, seus sorrisos, seus olhares furtivos para as paredes da casa, tudo é tão profundo, um reflexo da lua acende o mar e o torna de um negro submerso, eles não querem perder os detalhes de mim como se eu fosse uma caçadora e eles duas presas afundadas no sofá, belos e nervosos, agora embriagados de mim, onze horas, Isto é o mundo, isto sou eu, Gosto de olhar pela janela de mim mesma, Vou vestir um agasalho, eles sussurram na sala, mas param de falar quando retorno, vencida, Sinto frio nos cabelos, Acenda meu cigarro, meia-noite, eles olham o relógio, olham a mesa, os pratos limpos garfos dois cálices duas da manhã, duas taças fêmeas bêbadas de vinho do corpo da mulher, eles vão embora achando que não houve jantar, esqueci de dizer que o jantar era eu. (Noturnos - Ed. Companhia das Letras)