sexta-feira, setembro 29, 2006

Fragmentos do cinema...

Dedicado à Rogéria...
Noite quente. Alta e clara como toda a gente. Música forte. O bater do tambor a rimar com a dor dos homens. E mulheres também. Tudo bonito apesar de triste. Terra vermelha e água cristalina. Pé com areia e alma limpa. Tudo exatamente como deveria ter sido. O tempo a roçar o vento, chamego inerente ao desalento. Olho para o lado, eu vejo o homem. Vestido de branco, pele negra e sorriso brando. A atmosfera agora fica quieta. O rufar parou, a respiração parece até uma promessa. O ar faz festa e simplesmente se interessa em ficar, permanecer. Não entendo o que o homem me diz. Talvez não diga nada. Ele apenas me olha e sorri. Sinto tanto amor e dor que já não sei mais distinguir um do outro. Sorrio também e as lágrimas caem secas dos meus olhos. Transbordam para o meu vestido e criam raios luminosos, próprios do espelho do riso. Abaixo os olhos, ergo as mãos e se ainda permaneço em pé é porque minhas pernas me desobedecem. Entro em mim e assim como um raio, uma estrela, em mim mesma essa luz num repente desaparece...

quarta-feira, setembro 27, 2006

a agonia do dia ou seria o dia da agonia???

A agonia de acabar o dia,
Mas não é qualquer dia,
É o último dia de leseira e preguiça,
De curiosidade desinteressada,
De conhecer lugares, cheiros, gente, bichos,
Para simplesmente guardá-los nas miragens das lembranças passadas...

A agonia de acabar o dia,
Ver o sol caindo no mar,
O vento sem cessar a balançar todas as árvores,
Como avisando que o dia está acabando.

É quase o final do dia,
A agonia de acabar o dia só irá embora quando ele realmente findar...
Levar consigo esta agonia,
Será que ela vai,
Será que ela fica?

Talvez a agonia não seja só do dia,
Seja da vida vivida,
Repetidamente,
Todos os dias...

Ah, mas esta agonia não vai embora nunca,
Só quando o dia finda para ela,
Aí ela morre, sem dor, nem piedade,
Só porque, de repente,
Surgiu a felicidade.

sábado, setembro 23, 2006

Poesia feita em Niterói... inspiração no museu de arte contemporânea...

A flor sob o mar
O ar a olhar
O que ainda não me foi dado coroar.

Azul, verde e branco
O vento madurro
E o simples acalanto
Das lágrimas que caem do céu.
Num claro pranto.

Singela imagem
Ilumina a paisagem
Do concreto da flor sob a água
Da minha própria miragem...

quarta-feira, setembro 20, 2006

Sentimento sem nome...

Quando tenho fome,
A comida não me basta...
É preciso um pouco de...
Nem sei o nome.

Às vezes, acho que é saudade,
Mas logo que sinto, ela some.
Aí acredito ser dor,
Mas sem potência e disforme,
Me abandona correndo,
Sem deixar recado, nem sobrenome.

Tem dias que parece ser sentimento indefinido mesmo,
Com este nome e sobrenome,
E a vontade de entendê-lo,
Só faz com que ele mais se ausente...

Se esconda...
Em meio aos sonhos que consomem as minhas noites e os meus dias,
Mesmo quando acordada eu estou...
Sonhos que ainda não compreendo,
Que não consigo achar forma, nem enredo.

Não desisto...
Sei que chegará o momento em que ele virá,
Como desejo puro e simples,
Sentimento raro,
Chegando bem devagar,
E tomando para si meu coração,
Sem nem mesmo ter dito antes o seu nome.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Este é um texto que adoro ler nos meus momentos de alice...
"Para Maria da Graça - Paulo Mendes Campos

Quando ela chegou à idade avançada de 15 anos, eu lhe dei de presente o livro Alice no País da Maravilhas. Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca.

Aprende, pois, logo de saída para a grande vida a ler este livro como simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem a porta da realidade. A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?".

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou para pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares esta charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece esta palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas, nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados conseguem abrir uma porta bem fechada e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação banal e esperamos dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece geralmente às pessoas que comem bolo.

Maria há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser séria ou profunda.

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon !" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato; experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?".

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os corredores chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não conseguirá saber quem venceu.

Para o bolso: se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de seres a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste! Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante:" Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como toda as vidas dariam um romance, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e mulheres que suspiram e dizem:" Minha vida daria um romance!". Sobretudos os homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente. E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida toda uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos.

O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo.Mas como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda pessoa deve ter três caixas para guardar o humor: uma caixa grande para o humor mais ou menor barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma, por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo degrandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de sofrimento ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com a grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com tal complacência, que tem medo de não poder sair mais de lá.

A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice , depois de ter chorado um lago, pensava: " Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas". Conclusão: a própria dor tem a sua medida. É feio, imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça ".

sexta-feira, setembro 15, 2006

Fundo dos olhos...

Está escuro. Escuro como nunca esteve. Apesar da falta de visão tenho certeza do caminho que sigo. E sei que alguém está ao meu lado. Não compreendo como, muito menos o porquê. Mas isso me tranquiliza. Sentir alguém ao meu redor é muito mais relaxante do que eu imaginava. É como se a minha melhor parte também possa estar ao lado deste alguém. Me vejo no fundo dos olhos dele. Apenas sorrio pois reconheço neste fundo de olhos aquela que sempre tive medo. A que sentia, a que amava, a que chorava... a que chegou até mesmo a se afogar nas próprias lágrimas. Mas aprendi a nadar. Foram esses olhos, escuros e fundos, que me ensinaram ou simplesmente me deram a bóia. Não o sei ao certo. O que importa é que agora navego. Atravesso noites atrás dos meus pares. Atrás da insuspeita leveza dos altares. Da beleza dos colares. E da mais temida e esperada colheita dos lugares... Para sempre no fundos dos olhos deste alguém... Eternamente a me olhares...

terça-feira, setembro 12, 2006

Cartas do Amor...


Oi, tudo bem contigo?

Hoje mesmo me lembrei de você... Estava a andar despretensiosamente na rua quando me deparei com uma pequena marca de pneu na rua. Foi tudo tão rápido e estranho que quando voltei novamente meus olhos para a tal marca, ela já estava mais esmaecida. Sempre adorei esta palavra. Combina com você. Sempre passando rápido pela gente e lógico deixando marcas. Mas não era exatamente sobre isso que eu queria te falar... há algo mais. É tão irresistível que nem sei ao certo como dizer.
É melhor começar do início... ih, tô ficando repetitivo... isso sempre acontece quando fico nervoso... Hoje não me lembrei só de você quando vi a marca de pneu no chão da rua... não... me lembrei assim que acordei, ou foi assim que dormi?? Agora já não sei... é que sonhei contigo a noite inteira... Bom, eu só queria te dizer isso... tô com saudades... vê se deixa uma marca nova para eu poder me lembrar de você com mais precisão???

Beijos,

Amor



Meu querido Amor,

Adorei receber carta tua. Será que é assim que se fala?? Há tanto não escrevo que já nem sei mesmo como as palavras soam no papel. Olha só a minha idéia... as palavras não soam no papel, é lógico... elas brotam nele... assim ficou melhor, não acha???
Quer dizer que você se lembrou de mim ao ver a marca de um pneu na rua?? Simbólico, não?? E se eu te dizer que lembro de você todos os dias, logo que acordo e depois lembro mais uma vez, antes de dormir. Sonhar, não sonho não... Quer dizer não lembro, pois ouvi dizer que todos sonhamos mas às vezes temos a impressão que não porque simplesmente esquecemos nossos sonhos... Poético, não??? Esquecer os próprios sonhos... Bom, ando muito ocupado... você sabe do meu árduo trabalho... não é fácil ser o tempo... mas dia desses te ligo para ver se conseguimos matar as saudades...

Beijos no seu coração (ups... trocadilho infeliz, né??),

Tempo.

Carnaval de cores...

Visão que alucina,
Galhos como veias,
A bombar a seiva da vida,
Para o verde que confunde e se sacia...

O azul por trás,
A emoldurar o que ainda fascina,
A cor que encontra a sua própria fantasia,
Se veste,
Traveste para ser outra,
Apesar da sua sina.

Seixo de árvores que se encontram,
Se enredam e se queixam,
Simulam uma teia,
Mas inesperadamente se deixam...

Mexo, remexo, mas não tiro da visão,
Aquilo que irradia o meu desejo,
O sangue que pulsa no coração,
Que mesmo distante,
Sente a magia da visão descontínua,
Sinal da efemeridade da fotografia.

Breve momento,
Guardado para sempre,
Pela visão que sentencia,
A vida e a morte,
Do que nos toca e nos move,
Fascina e consome,
E nem mesmo assim,
Nos socorre da nossa própria agonia.

segunda-feira, setembro 11, 2006

À beira do mar aberto...

A primeira vez que li este conto me emocionei ao vislumbrar como alguém tinha conseguido colocar em palavras sentimentos que há tanto me assombravam... se existe um texto que eu gostaria sinceramente de ter escrito é este... mais um conto do caio fernando abreu do livro "os dragões não conhecem o paraíso"...
"... e de novo me vens e me contas do mar aberto das costas da tua terra, do vento gelado soprando desde o pólo, nos invernos, sem nenhuma baía, nenhuma gaivota ou albatroz sobrevoando rasante o cinza das águas para mergulhar, como certa vez, em algum lugar, rápido iscando um peixe no bico agudo, mas essas outras águas que lembro eram claras verdes, havia sol e acho que também um reflexo prata no bico da ave no momento justo do mergulho, nessas águas de que me falas quando me tomas assim e me levas para histórias ou caminhadas sem fim não há verde nem é claro, o sol não transpõe as nuves, e te imagino então parado sozinho sobre a faixa interminável de areia, o vento que bate em teu rosto, as mãos com os dedos roxos de frio enfiadas até o fundo dos bolsos, o vento e novamente o vento que bate em teu rosto, esse mesmo que me olha agora, raramente, teu olho bate em mim e logo se desvia, como se em minhas pupilas houvesse uma faca, uma pedra, um gume, teu rosto mais nu que sempre, à beira-mar, com esse vento a bater e a revolver teus cabelos pensamentos, e eu sem saber o que me revolve agora quando teu olho outra vez escorrega para fora e longe do meu, entre tua testa larga de onde às vezes costumas afastar os cabelos com ambas as mãos, numa mistura de preguiça e sensualidade expostas, e quando teu olho se afasta assim, não sei para onde, talvez para esse mesmo lugar onde te encontravas ontem, à beira do mar aberto, onde não penetro, como não te penetro agora, mas é quando a pedra ou faca no fundo do meu olho afasta o teu é que te olho detalhado, e nunca saberás quanto e como já conheço cada milímetro da tua pele, esses vincos cada vez mais fundos circundando as sobrancelhas que se erguem súbitas para depois diluírem-se em pêlos cada vez mais ralos, até a região onde os raspas quase sempre mal, e conheço também esses tocos de pêlos duros e secretos, escondidos sob teu lábio inferior, levemente partido ao meio, e tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essa, do mar, das velhas tias, das iniciações, dos exílios, das prisões, das cicatrizes, e em tudo que me contas pensando, suponho, que é teu jeito de dar-se a mim, percebo farpado que te escondes ainda mais, como se te contando a mim negasse quase deliberado a possibilidade de te descobrir atrás e além de tudo que me dizes, é por isso que me escondo dessas tuas histórias que me enredam cada vez mais no que não és tu, mas o que foste, tento fugir para longe e a cada noite, como uma criança temendo pecados, punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo nunca mais ouvir, nunca mais ter a ti tão meticulosamente próximo, e escapo brusco para que percebas que mal suporto a tua presença, veneno, veneno, às vezes digo coisas ácidas e de alguma forma quero te fazer compreender que não é assim, que tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não decifro, a aceitá-los como um cão faminto aceita um osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos vazios, torno sempre a voltar, talvez penalizado do teu olho que não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu, temendo a faca, a pedra, o gume das tuas histórias longas, das tuas memórias tristes, cheias de corredores mofados, donzelas velhas trancadas em seus quartos, balcões abertos sobre ruazinhas onde moças solteiras secam o cabelo, exibindo os peitos, tornarei sempre a voltar porque preciso desse osso, dos farelos que me têm alimentado ao longo deste tempo, e choro sempre quando os dias terminam porque sei que não nos procuramos pelas noites, quando o meu perigo aumenta e sem me conter assaltaria feito um vampiro faminto para te sangrar e te deixar mudo, sem nenhuma história a te esconder de mim, enquanto meus dentes penetrando nas veias da tua garganta arrancassem do fundo essa vida que me negas delicadamente, de cada vez que me procuras e me tomas, contudo me enveneno mais quando não vens e ninguém então me sabe parado feito velho num resto de sol de agosto, escurecido pela tua ausência, e me anoiteço ainda mais e em entrevo tanto quando estás presente e novamente me tomas e me arrancas de mim me desguiando por esses caminhos conhecidos onde atrás de cada palavra tento desesperado encontrar um sentido, um código, uma senha qualquer que me permita esperar por um atalho onde não desvies tão súbito os olhos, onde teu dedo não roce tão passageiro no meu braço, onde te detenhas mais demorado sobre isso que sou e penses quem sabe que se aceito tuas tramas, e vomitas sobre mim, depois puxas a descarga e te vais, me deixando repleto dos restos amargos do que não digeriste, mas mesmo assim penses que poderias aceitar também meus jogos, esses que não proponho, ah detritos, mas tudo isso é inútil e bem sei de como tenho tentado me alimentar dessa casca suja que chamamos com fome e pena de pequenas-esperanças, enquanto definho feito um animal alimentado apenas com água, uma água rala e pouca, não essa densa espessa turva do mar de que falaste no começo da tarde que agora vai-se indo devagar atrás das minhas costas, e parado aqui ao teu lado, sem que me vejas, lentamente afio as pedras do fundo das minhas pupilas, para que a noite não me encontre outra vez insone, recompondo sozinho um por um dos teus traços, dos teus pêlos, para que quando esses teus olhos escuros e parados como as águas do mar de inverno na praia onde talvez caminhes ainda, enquanto me adestro em gumes, resvalarem outra vez pelos meus, que seu fio esteja tão aguçado que possa rasgar-se até o fundo, para que te arrastes nesse chão que juncamos todos os dias de papéis rabiscados e pontas de cigarros, sangrando e gemendo, a implorar de mim aquele mesmo gesto que nunca fizeste, e nem mesmo sei exatamente qual seria, mas que nos arrancasse brusco e definitivo dessa mentira gentil onde não sei se deliberados ou casuais afundamos pouco a pouco, bêbados como moscas sobre açúcar, melados de nossa própria cínica doçura acovardada, contaminados por nossa falsa pureza, encharcados de palavras e literatura, e depois nos jogasse completamente nus, sem nenhuma história, sem nenhuma palavra, nessa mesma beira de mar das costas da tua terra, e de novo me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delizadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo faminto o que teu corpo rejeita, bebendo teu mágico veneno porco que me ilumina e anoitece a cada dia, e passo a passo afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento de nós ou o imenso engano de ti e de mim, nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos, corriqueiros, `a medida que o dia avança estruturando milímetro a milímetro uma harmonia que só desabará levemente em cada roçar temeroso de olhos ou de peles, os gelos, os vermes roendo os porões que insistimos em manter indevassáveis, até que o não feito acumulado durante todo esse tempo cresça feito célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas visíveis indisfarçáveis, flores de um louco vermelho na superfície da pele que recusamos tocar por nojo ou covardia ou paixão tão endemoninhada que não suportaria a água benta de seu próprio batismo, e enquanto me falas e me enredas e me envolves e me fascinas com tua voz monocórdia e sempre baixa, de estranho acento estrangeiro, penso sempre que o mar não é esse denso escuro que me contas, sem palmeiras nem ilhas nem baías nem gaivotas, mas um outro mais claro e verde, num lugar qualquer onde é sempre verão e as emoções limpas como as areias que pisamos, não sabes desse meu mar porque nada digo, e temo que seja outra vez aquela coisa piedosa, faminta, as pequenas-esperanças, mas quando desvio meu olho do teu, dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha ou fatalidade, não importa, estamos tão enredados que seria impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias onde aparentemente nada acontece e tenha inventado quem sabe em ti um brinquedo semelhante ao meu para que não passem tão desertas as manhãs e as tardes buscando motivos para os sustos e as insônias e as inúteis esperas ardentes e loucas invenções noturnas, e lentamente falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir me afunda mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba nem assim nem agora nem aqui........................................

domingo, setembro 10, 2006

A vida...

Abri meu coração. Tirei tudo o que tinha dentro dele. Teias, artérias, veias e mofo. Olhei para dentro e vi que ainda tinha algo morto. Mas não era do meu próprio órgão. Era estranho e indiscreto. Quando tentei descobrir o que era, a coisa – por não saber do que se trata vou nomeá-la o mais genericamente possível – deu um pulo e um grito. Tudo ao mesmo tempo. E eu com o coração ainda aberto e a vendo se afastar. Pensei que pudesse ser algum ressentimento, afinal eles costumam mesmo serem coisas e gritarem e pularem, nunca sabendo muito bem para onde. Mas percebi que não. Não era algo vivo, nem tampouco palpável. Era apenas um bolo de carne com muito cabelo, alguns dentes e uma vaga idéia de imortalidade. Percebi que era mesmo um pedaço inacabado de mim. Quase como uma promessa de uma vida que não vingou. Um pedaço ensangüentando de perda e morte. Uma mera consciência ainda inerente do corte. Costurei meu coração novamente e deixei de perseguir o que o habitava. Agora sabia que a minha vida estava mesmo acompanhada da morte. E ambas de mãos dadas era o que mais importava, pois me dava a nítida impressão de que é preciso que mortes ocorram para que a vida possa ressurgir... que venha então a vida...

sábado, setembro 09, 2006

As cores e o olhar...

"... Era a primeira vez que olhava verdadeiramente para trás. Verdadeiramente... estranhou... essa não era realmente uma palavra que usava com muita assiduidade. Mas agora ela já fazia parte dela. Quer dizer dela inteira não... tinha invadido ao menos o seu coração. Era nisso que pensava na primeira vez que olhou para trás. Não estranhou a visão estranha que o olhar possui nesta direção. Ela que nunca o havia avistado. Não, certamente não era isso que era estranho. O estranho mesmo era o fato de virar a cabeça, deixar a cabelo solto a mostrar o vento da mudança ao simplesmente olhar para trás, para o que já foi, para o que se encontra irremediavelmente determinado. Mas foi quando todos esses pensamentos rondavam sua mente, ela percebeu que seus olhos não podiam ver as cores das coisas ao olhar para trás. Era tudo preto e branco. Olhou novamente para frente e as cores invadiram o seu campo de visão. Começou a fazer experimentos. Olhar rápido de frente para trás, de trás para frente, e a sucessão do colorido com o preto e branco se fez cada vez mais presente. Fechou os olhos. A escuridão se fez como nunca aos seus olhos. Se acostumou com ela quase como um acalanto. Parou de querer olhar. O escuro lhe deu a visão da música que invadiu o ambiente e permaneceu assim... de olhos fechados, simplesmente olhando a escuridão, ouvindo os sons coloridos que lhe apareceram... Nunca mais quis olhar para trás... ao menos enquanto houvesse música... ao menos enquanto houvesse cores..."

terça-feira, setembro 05, 2006

A PROCURA DO ENCONTRO...

Olho pela janela,
A descubro, serena e bela,
Clara e nua, branca lua,
Iluminando os mistérios.

Sinto na sua forma,
A presença do eterno,
A encerrar monastérios,
Desbravar caminhos etéreos,
Trazer para a consciência a simplicidade de ser terno.

Espio e ela continua.
Linda, branca, nua,
A escancarar na rua,
A sua presença deslumbrante e sem eixo.
Deixo e entrego-me ao seixo do que desejo,
Pois ela, além de linda e bela,
Encerra a quimera.
Luz eterna que guia a minha passarela,
Coloca flores nela e a deixa brilhante,
Para que eu possa caminhar sempre no infinito dela.

domingo, setembro 03, 2006

Fome... será do quê??

FOME


A fome do beijo dado,
Não é loucura, nem poesia,
É apenas a teimosia em ter procurado,
Fome tosca, fome louca,
A fome é do tamanho da boca,
Do beijo mau fadado,
Hálito doce,
Pele quente,
Membro dilacerado,
A fome é tanta e tão dormente,
Que nela o beijo não deixa de ser apressado,
Restando quase inexistente.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Paratii... Amyr Klink

Este livro estava na minha estante há bastante tempo e quando finalmente o li percebi quanto tempo havia perdido... é exatamente por falar tão bem dessas coisas ... tempo, solidão e amizade ... que me impactou tanto...

"... Sob todos os aspectos a minha residência vermelha era um lugar agradável. Havia privações, é claro. Morria de saudades da bagunça de casa, dos amigos malucos, da árvores que plantei nos lugares mais mirabolantes, das viagens que sempre fazia - mas não estava, de modo algum, sofrendo. De malucos menos amigos estava a uma prudente distância, viagens não faltariam até chegar em casa, e árvores, bom, era uma questão de latitude e paciência apenas.

Pilotava o tempo todo em alta velocidade, na direção que havia marcado, deliciosamente, sem poder detê-lo ou voltar atrás. Lembrei-se da carta do Hélio Setti, que tantas vezes li e tão importante foi durante a travessia para cá. Miseravelmente ela desaparecera meses antes, provavelmente enfiada em algum livro ou canto "para não perder".

Ela falava sobre o tempoi. Não. Não parei no tempo como pensei que faria quando o Paratii ficou imobilizado no gelo. Não me tornei escravo, nem senhor, do tempo como pensava o Hélio. Mas descobri que podia conduzir o meu tempo, somar todos os instantes numa única direção. Transformar os meses e os segundos que faltavam em distância, em um lugar para se chegar. Os poucos dias em que deixei à deriva o tempo, quando não sabia com certeza o que faria além de partir, foram dias lentos de calmaria, de clima terrível, de péssimo humor. Não e não. Mil vezes a perspectiva de enfrentar a pior tempestade do que as mornas calmarias sem rumo, sem ir a lugar nenhum.

Foram esses, é gozado, os únicos dias em que me senti só. Quando deixei os planos à deriva e permiti que as coisas acontecessem sem sabe delas, onde iriam parar.

Agora era muito diferente. Mesmo que fosse num cemitério, eu sabia onde as coisas iriam parar se me distraísse, cometesse erros ou deixasse o barco à deriva. Sabia que o sol retornaria, que um dia o gelo se partiria em pedaços e eu então poderia seguir.

O inverno, a vida isolada pelo gelo não eram permanentes. Eu não havia sido abandonado na baía Dorian. Não estava fugindo de nada, nem tentando provar meus conhecimentos ou capacidade, ou negando a sociedade de consumo. Não estava tentando me conhecer ou superar os limites do homem, nada dessas bobagens. Apenas era o que mais desejava no mundo. Uma única vez, por um ano inteiro. Sozinho. Por quê? Não tenho a mais vaga idéia. Só sei que, embora ilhado, solidão não passei. Trazia próximos, como nunca, pessoas queridas e amigos, e a provisória distância que nos separava era apenas física. Uma distância real e emocionante que sabia muito bem como percorrer. Uma distância fácil de resolver. A verdadeira solidão, a distância interior, entre pessoas às vezes próximas, o abandono, a falta de um objetivo, de vontade, ou de apoio, depois de partir, nada disso conheci. (...)
Não poder dividir momentos especiais poderia ser um problema, mas há situações que se passam no mar que são para não serem divididas. Algumas tão belas e únicas que devem continuar inteiras por dentro de quem as vê e só assim se transmitem: inteiras. Outras difíceis, como medo e pânico, onde a soma entre pessoas pode não ajudar. Sozinho, por instantes apenas, vi coisas e vivi situações suja beleza indivisível, única, guardarei para sempre. Passei por encrencas que não desejo para amigo nenhum. E foi só - por esses breves instantes que dura um inverno -, que descobri como fazer o tempo correr para tornar próximos todos os lugares, e certas pessoas, por quem se morre de saudades..." (Paratii, entre dois pólos - Almyr Klink)