terça-feira, março 27, 2007

No colo do Verde Vale por Marina Colasanti

Cansado. Assim sentia-se o Tempo.
- Muito mais que velho, muito além de antigo. Isto eu sou - pensava andando para a frente , ele que não conhecia outra direção.
Vasculhando o passado que trazia às costas, não encontrava o dia em que tinha começado a caminhar. Já procurara muito. Agora até duvidava que existisse esse dia, que ele, como tudo o mais, tivesse um começo. Há tanto andava, que não sabia quanto, e bem podia há outro tanto estar andando.
Lá longe, porém, na juventude - se é que alguma vez tinha sido jovem -lembrava-se de caminhar com alegria, os passos, ou a alma, leves. Ah! sim, tinha sido bom. Naquela época, certo de que o mundo inteiro era arrastado por ele, como numa imensa rede, enchia-se de orgulho e de poder.
- Eu piso com o pé direito - dizia afundando bem o calcanhar - e trago a primavera. Piso com o esquerdo - lá ia o outro pé marcando a terra -e vem chegando o verão. Cada passada minha faz uma flor, um fruto, uma semente.
Ria vendo girar as pás do moinho de vento.
- Coisinha de nada - dizia-lhe - se o vento acabar, você morre. Eu não, eu sou meu próprio vento. Sou eu que comando a ordem de tudo, que faço a hora do sol, e marco a noite da lua. Eu que empurro este mundo todo para a frente.
Essa tinha sido sua razão para andar. Mas agora, tantas luas acumuladas no seu rastro, tantas frutas desfeitas no chão, já não lhes via a graça. Pois nada havia à sua frente que não conhecesse.
Só uma coisa não conhecia. Parar.
Foi pensar na palavra, e estremecer de susto. Nunca antes essa idéia tinha estado com ele. Pela primeira vez desde a alegria, percebeu que tropeçara em algo novo.
Parar, seria possível?
- Mas se eu parar - pensou - os filhos não se acabam no ventre das mães, os passarinhos nos ninhos não aprendem a voar.
E continuo andando.
Mas a idéia seguiu caminho com ele, mais tentadora a cada passo. E o Tempo começou a olhar o mundo com outros olhos, procurando em todo lugar a sedução que o faria cometer tão grande audácia.
Olhou a cachoeira. Imaginou-se ali, os pés metidos na água fria, ouvindo para sempre o canto transparente.
- Mas seu eu parar, pára a água, - pensou num susto - a canção emudece. Não terei mais o que ouvir, nem onde molhar os pés. E triste, tocou as pernas para a frente, uma depois da outra, como sempre.
Olhou a floresta. Pensou o bom que seria deitar naquele musgo rasgado de sol. E já se via quase lagarto, quando lembrou que as árvores parariam de crescer, as folhas parariam de mexer, o sol pararia de brilhar. E levantando os joelhos com cansaço e tédio, foi adiante.
Chegou ao deserto. - Enfim, um lindo mundo parado ! - exclamou. Mas da crista das dunas o vento soprou areia em seus olhos, e ele percebeu que nem ali poderia ficar. E foi ao mar, e viu as ondas. E passou pelo lago, e viu os peixes. Tudo se movia. Tudo, pensou, estava preso à rede que trazia nas costas.
Até chegar ao vale. Liso, lindo, lento vale.
Águas se perseguiam entre lago e regatos, espigas balançavam a cabeça jogando grãos ao vento, flores se voltavam para o sol. Ali também, no mesmo movimento, nada estava parado.
- Pois eu estarei ! - exclamou súbito o Tempo, reconhecendo naquela paz todo o seu desejo.
E aos poucos, suspiroso, temendo a própria coragem, espraiou-se no vale, estendeu-se longo como ele mesmo não sabia ser. E pela primeirva vez descansou.
Céu acima, doce grama embaixo, ainda esperava porém o desastre, o enorme desabar da ordem. E alisava o pêlo daquele chão, finas hastes e talos, para levá-lo na memória das mãos quando fosse preciso levantar-se e recomeçar a marchar para sempre, em castigo por aquele momento de fraqueza.
Silêncio no vale.
Acabou-se - pensou, esmagado de culpa - tudo parou. - A luz do solpareceu escurecer.
-É o fim, - e entrefechou os olhos.
Mas chegou um mugido de longe, estremeceu um coelho no mato, uma folha caiu.
Para surpresa do Tempo, movia-se o mundo.
- Não sou eu, então, que carrego isso tudo ? - perguntou-se intrigado, sentando.
E debruçado para olhar de perto o mundo pequeno que nunca tivera tempo para olhar, viu o grilo saltar vergando fios de grama, viu o escaravelho marcar sua passagem rolando a bola de esterco, a serpente escorrer em curvas, cada um no seu ritmo, avançando, tecendo a rede que ele acreditava segurar as pontas.
E ali, inclinado sobre a vida, descobriu aquilo que nunca suspeitara. Não era ele com seus passos que ordenava tudo, que comandava o salto do grilo, o vento na espiga, as pás do moinho. Mas eram eles, grilo e espiga, cada um deles que, com seus pequenos movimentos, faziam os passos do Tempo.
Então abriu as mãos, soltou a carga que acreditava carregar, deitou a cabeça. Serena, a nuvem se afasta. O sol volta a desenhar sombras.
No colo do Verde vale, dorme afinal o Tempo, enquanto filhotes amadurecem nos ovos.
(Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento - Marina Colansanti).

quinta-feira, março 15, 2007

Encontros...

Ela ainda não sabia como olhar para ele. Talvez ele a compreendesse, talvez não. E isso era quase uma tortura para a pele dela. Saber que a composição com a pele dele dependia do entendimento. Ela fingiu que esqueceu e continuou a andar. Olhando sempre para os lados, para o alto e para baixo. Reconheceu lugares, deu de ombro com os ares e quando menos imaginou, ele a olhou, como há muito não fazia. Ela o fitou longamente e sabia que daquele encontro sairia paixão alegre. As tristes tinham ficado para trás. Longe que nem conseguia avistar. E foi assim que um bolo de carne se formou. E continua a se formar...

terça-feira, março 13, 2007

Janela...

Abro minha janela. Encontro nuvens, flores e um punhado de pó de canela. Olho ao redor e sinto o vento entrar nas minhas narinas. Quente e seco. O céu claro e leve. Sei que a minha janela vai mudar. O que verei? Ainda não sei... mas levo dentro do meu olhar, a vontade de ver, de enxergar... A rua tranquila, a luz do luar... A tua imensidão sempre a me perguntar... Onde tu moras?? No mundo - respondo...

segunda-feira, março 05, 2007

Pro dia nascer feliz... pro mundo inteiro acordar e a gente dormir...

Sábado fui assistir o filme "Pro dia nascer feliz" do João Jardim (co-diretor do também ótimo documentário "Janela da Alma" uma poesia dedicada ao olhar), documentário que fala sobre o sistema educacional e sobre jovens.
Sai do cinema extremamente tocada pelo tom sombrio que senti em todas as falas dos meninos e meninas que aparecem o filme. Alguns das comunidades pobres do rio; são paulo; outros do bairro rico alto de pinheiros; e mais outros de cidades pequenas do estado de pernambuco.
Incrível perceber a sensibilidade da câmera que ao relatar atos de violência mostra apenas a chuva sob o céu cinzento, panorâmicas sobre as grandes cidades e os grandes contrastes e desigualdades que as cortam.
Senti arrepios ao ouvir os lindos textos de duas meninas, uma que lê vinícius, manoel bandeira e carlos drumond de andrade na pequena cidade do interior de pernambuco e que escreveu um poema sobre exílio ao pensar em sair de sua origem e outra que um ano após terminar o segundo grau quando dizia que só conseguia escrever quando estava muito triste, diz não mais escrever depois que começou a trabalhar numa fábrica dobrando calças. Ela não sabe dizer porque.
O coração bateeu mais rápido quando ouvi as meninas do alto de pinheiros falarem da bolha que as separa daqueles "diferentes", bolha formada pelas aulas de natação, inglês, vazio e solidão.
Sensação de abismo para todos. Abismos diferentes, mas igualmente assustadores, frios e cheios de vácuo.

Vontade de continuar a cantar a música e emendar depois do título do filme... Pro mundo inteiro acordar e a gente dormir... dormir... pro dia nascer feliz...

quinta-feira, março 01, 2007

Noite

Outro dia vi este texto, escrito por mim há doze anos... Vou reproduzí-lo exatamente como o encontrei...

"A noite parecia muito distante e a cada momento os meus pensamentos rondavam a Lua como se ela fosse capaz de desvendar as emoções perdidas.

O horizonte cada vez mais longínquos mostrava a todos que as possibilidades se perdem quando nossos anseios se tornam em algo que nem a nossa razão consegue compreender.

Eu não queria estar ali e ao mesmo tempo sentia que a única saída era permanecer, como se algo pudesse ser diferente. Aliás eu não estava ali; eu era uma luz ofuscante que não conseguia encontrar o seu lugar; uma sombra que havia se escondido tão profundamente que nem mesmo a indecisão era capaz de me encontrar.

O ar parecia mais pesado e apesar de todos os desencontros, nós estávamos como há muito havíamos desejado, lado a lado, juntos até que algo nos separasse. E o algo aconteceu mais depressa do que poderíamos imaginar, as circunstâncias tornaram todo e qualquer contato improvável e até impossível.

A penumbra tornou-se presente e eu já não sabia se a queria, pois de todas as minhas incertezas, a magia era a mais constante e a mais temida. Suas palavras se perdiam na imensidão e até meus olhos estavam presos no que acontecia. Era uma estranha maneira de pertencer.

Quando sua luz pôde ser vista de longe, todos puderam perceber que ela já não era tão brilhante e a sua intensidade era inalcançável se vista a olho nu. Nua, era assim que eu me sentia diante de você, sem palavras, sem sentimentos, sem decisões, nua como havia sido desde sempre.

Seu corpo era também transparente e nunca puder saber o que me dizia, ele também era mudo. Eu te queria como uma sombra que às vezes aparecia e outras não podia ser encontrada. Eu era a sombra e não sabia, o vento que não sabia soprar se aproximava de nós e nos dizia como éramos distantes, diluídos.

Eu estava perdida, morta de tanto viver. E o que eu ainda não sabia é que queria viver com você."