quinta-feira, abril 27, 2006

beijo do vento...

O vento traz o centro do que ainda não entendo,
Mas o seu ventar constante
Mostra a exatidão dos sentido
Eternamente explorados e presos
Nas superfícies do que me é desatento.

A pedra na mão
Única porção do real
A me trazer o alento
Do que me já é conhecido
Encontra na sua incompreendida forma
O seu confesso lamento

O corpo todo em festa
Como se a boca fosse a fresta
Do eterno ventar e seu despertar lento
A mexer com o que me move
Me deixa entre a inexatidão e o sossego
Fome do ensejo
Do ser que não vejo,
Mas me preenche inteira,
Simplesmente com seu beijo.

quarta-feira, abril 26, 2006

Mais um conto... como explicar a paixão por livros...

A DESCOBERTA DA ESCOLHA


Sempre tivera paixão por livros. Lembrou de quando tinha nove ou dez anos e seu passatempo preferido – principalmente no período de férias – era ir à livraria perto da sua casa e comprar com a sua mesada uma pequena brochura para ler o resto do dia.

Ela ficava tão ensimesmada lendo que nem percebia o dia passar. Não era raro ter que esconder-se no banheiro para passar a noite adentro devorando as palavras escritas no papel. Palavras que agora restavam apenas na sua memória. Fugir para o banheiro era a sua forma de driblar a dificuldade quando a família viajava para o pequeno apartamento na praia e o quarto coletivo a impedia de ler na cama, como sempre fazia na sua casa.

Lembrou-se também que ás vezes, pela sua insaciável curiosidade, o livro não durava mais que um dia. Quando isso acontecia, ela juntava as moedas do troco do dia anterior com a contribuição sempre farta da sua tia preferida para já – na manhã seguinte – ir à livraria e escolher outro amigo para passar o dia.

As histórias que ficaram nas suas lembranças são muito vivas, apesar de um pouco rala, com alguns buracos de esquecimentos. Lembra que gostou muito de um suspense onde as crianças desvendavam o mistério seguindo o vilão de trás para frente e que chorou de emoção quando leu sobre a tristeza que a chuva sentia por ter ver sempre classificado como “dia feio” aquele em que ela resolvia aparecer. Um pouco mais velha, ficou muito tocada pelo conto de uma menina loira que se submetia às crueldades de sua colega da escola só para poder ler um livro do Monteiro Lobato, se identificou com aquela pequena criatura que ao conseguir pôr as suas mãos no maço grosso de papéis sentiu ter conhecido seu amante e desde então, entendeu perfeitamente a clandestinidade dos sentimentos, principalmente da felicidade.

E assim foi crescendo, sob os olhares e as palavras de seus pais, é uma menina diferente mesmo, diziam eles entre desiludidos e entusiasmados. A paixão pelos livros não diminuiu, mas acabou sendo diluída e misturada com outras paixões: a música, o cinema e porque não, os rapazes que sempre acabavam aparecendo nestas paragens.

Mas foi só quando fez vinte e oito anos que percebeu que não escolhia seus livros. Foi uma descoberta que a deixou estonteada e sem entender nada. Até aquele momento eram vários os livros que havia começado e não tinha conseguido terminar. Tantos que nem conseguiria precisar. Até porque quando dividiu a sua paixão por livros com a música, cinema e garotos, passou também a não dedicar os seus dias inteiramente a eles – como quando fazia na infância – e nem sempre a um só livro por vez. Era freqüente ler quatro ou até cinco livros ao mesmo tempo.

Esta mania fez com que começasse a colecionar além de livros, marcadores. Mas não era raro ter que dobrar a ponta superior da página que estava lendo para poder recomeçar depois. Por isso, a maioria dos seus livros tinha as páginas marcadas. Gostava disso. Era como se desenvolvesse uma forma de os possuir mesmo não os lendo até o final.

Porém até aquele momento não tinha percebido que isso acontecia. Na verdade, naquela fração de segundos compreendera que quem a escolhia eram os livros e não era ela quem os escolhia. Tomar consciência desta falta de controle e poder na escolha das suas leituras foi como tomar um choque. Ter o frio e o quente juntos a espantar o seu sentimento de pertencer inócuo.

Ao mesmo tempo, sentiu um certo contentamento. Percebera afinal que não era ela quem não conseguia escolher entre diferentes paixões.A partir daquele momento, não precisaria mais sentir aquela conhecida sensação de culpa que a invadia quando entrava em uma livraria e apesar de lembrar dos muitos livros ainda não lidos – inclusive dos começados e não terminados – saía com a sacola cheia de novas iguarias. Sorriu ao entender que sentir aquilo não tinha mais sentido com aquela descoberta.

Certamente aquele foi um ritual de passagem da sua recorrente intermitência e culpada necessidade de penitências. Depois de perceber que eram os livros que a escolhia, sempre que a perguntavam sobre uma nova leitura, dizia aliviada, ainda não li, ele ainda não quis me conhecer, mas não me chateio – completava – sei que se ainda não me escolheu é que eu ainda não estou pronta para lê-lo.

Foi com esta leveza que começou a colocar mais estantes nas paredes do apartamento que antes estavam nuas. Afinal, os livros eram tantos e o tempo tão impreciso, pensava sonolenta e desatenta, deitada com eles ao redor, como inserida em um paraíso aonde não só a morte, mas também a leitura, é muito lenta.

terça-feira, abril 25, 2006

instantâneos de igrejas...

ANJOS DE NINAR – Igreja Matriz - Parati

A chuva não para,
Ás vezes fina, às vezes rara,
Outras valente e forte,
Como se a mostrar a sua cara,
Sem sorisso, nem sorte,
Mas com a morte do que transforma.

Entro na igreja,
Ao fundo, a ave maria me beija,
Traz ao meu coração,
O calor que a chuva apagou,
Com a sua imensidão.

As cores da nave
São as mais inesperadas,
O azul turquesa lembrando o céu,
O amarelo como se fosse a gema do ovo,
Vida que não vingou no lodo,
E o rosa salmão estampado em flores de plástico,
Como se a dar a aparência do eterno ao que é apenas transitório, quase fantástico.

Colunas de anjos crianças,
Uns brancos, outros negros,
Emolduram o altar,
Circundados por rosas de seda,
Que lhes dão o ar de bonecas,
Aguardando crianças para os ninar.

Duas imagens se confrontam,
Um guerreiro com uma espada e uma balança,
E uma mulher a segurar uma criança.
As duas faces do humano,
O masculino, com sua força e equilíbrio,
E o feminino com o seu amor desmedido.

Permaneço sentada,
Não consigo levantar,
São tantos símbolos, tantas mensagens,
Mas o que ainda me dói,
É saber que de ti vou me separar...

A imagem da pomba no topo da nave,
Me olha com esperança,
E eu lhe digo, sem palavras,
Apenas com as lembranças,
Que ainda sou muito humana,
Para não sentir esta mudança.

Penso que poderia voltar,
Caminhar até o ponto em que não fosse necessário se separar,
Mas os anjos crianças me olham como se a dizer,
Coragem, neste caminho não há volta,
Pois ele é sempre circular,
Basta levar uma rosa numa mão para não murchar,
E a esperança na outra, a espalhar.


AUSÊNCIA LIBERTA - Igreja do Rosário - Parati

Pequena como a mão que os afagou,
Um altar com azul e dourado,
Duas imagens ao lado,
Uma negra, parece São Benedito,
Outra branca, parece um profeta com barba, altivo.

Dizem que era a igreja dos escravos,
Atmosfera inquieta,
O ruído da rua adentra,
E traz para o ambiente,
Uma sensação que desperta a minha ausência,
Vazio que contamina as minhas crenças,
E as torna mera inexistência ...

As pombas aqui também estão,
A emoldurar as imagens,
Imaginando que assim,
Elas sustentam as miragens,
O sentimento de abandono e solidão,
Gravado no meu personagem.

O amarelo mais claro,
Aqui está nas velas,
É a própria luz,
Que tenta mostrar,
A direção do que se espera...

Me aquieto,
A música me acalma,
Não a conheço, mas mesmo assim,
Cala a minha alma.
Traz para dentro dela,
Aquilo que mais preciso,
A força e a humildade,
Símbolo daqueles que fizeram deste lugar,
O refúgio do corpo machucado, do espírito aviltado e da saudade do lar,
Cativos de outrora,
Que nos mostram que a libertação só é possível quando admitimos,
Que a verdadeira prisão é a corrente de sangue que esmaga o coração,
Orgulho que o deixa sem fala, nem ação,
Apertado, esgotado, enlameado,
E é só a fraqueza que liberta,
O sentimento do peso, a alma do não apreço e a calma do desassossego.

domingo, abril 23, 2006

Mais poesia...

NOTAS DE AGRADECIMENTO

A ti sou grata,
Por ter me reconhecido em meio ao gelo,
Inata

A ti agradeço,
Por ter feito eu me descobrir,
Mesmo quando a fuga era meu único apreço.

Por ti tenho gratidão,
Por ter aberto meu coração a sangue frio,
No meio da multidão, obrigando a me afastar da solidão.

É tanto agradecimento,
Que por muito tempo confundi com outros sentimentos,
Loucura, amor, entusiasmo ou simples apego...

Depois descobri,
O que sinto por ti,
É o amor dos que foram salvos por aquilo que eles mesmos escolheram morrer,
Não aquela morte fria e fina,
Mas aquela que pertence ao sofrer em demasia,
Procurar onde não existe o que mais te inebria e
Descobrir, de mãos vazias, em meio ao nada,
Que mesmo assim, teu coração pulsa, cheio de vida...

sábado, abril 22, 2006

Recomeço...

RECOMEÇO

Passei nove meses no inferno,
Outros nove no céu,
Depois, fiquei perdida,
Entre o sereno e o fel.

No inferno, senti tanto medo,
Foi à escuridão que me trouxe o sossego,
Quando consegui amar,
Sem me preocupar com o retorno ou o começo.

No céu, senti tanto desejo,
Que a música calou o meu dissabor,
E me causou confusão,
Perceber o quanto sentir,
É ser humano sem fim,
Perdido entre o belo e o horror,
Ambos eternos e sem cor.

O mais difícil,
Foi mesmo o retorno,
Tentar traçar o contorno,
Entre o inferno e o céu,
A procurar o equilíbrio,
Que simplesmente não encontro.


Procuro o segredo,
Para trazer ao meu enredo,
As respostas que me dão,
Com a cabeça no céu,
Os pés no inferno,
A simples vontade do meu desejo.

Calo no meu peito,
Esse sincero desconforto,
De voltar para a terra,
Como nascer de novo,
Sem parto, nem choro,
Mas com a alma cravada,
Das memórias do entorno,
Cheias da escuridão do inferno,
Repletas da música do céu,
A desenharem com exatidão,
A imagem do meu retorno.

Transparente como um véu,
Forte como um cordel e
Humano como uma solidão no carrossel,
A aguardar na infinidade do mar morto,
O único porto sem endereço,
Escondido na consciência do novo,
Como a única possibilidade de adereço.
Apenas com amplidão do eterno recomeço.
A inaugurar um destino com jeito de torto.

sexta-feira, abril 21, 2006

o samba e a vida - de mãos dadas e reluzidas

Ontem um amigo nos levou ao samba. Mas não era um samba qualquer... era o samba e a vida unidos como nunca tinha visto. Não tentarei explicar o que isso significa pois nem mesmo sei, só sei o que senti... e foi bonito, e foi triste na medida certa e foi apaziguador com toda a possibilidade de alegria e dor que o samba é capaz de traduzir ao coração que dele se aproxima apenas por amor... Sentir o que faz as pessoas unirem as suas vozes ao redor de uma mesa e vislumbrar a emoção não dita nem por isso bendita nos olhos daqueles que arriscam suas canjas é dar de cara com a possibilidade de transmutar os sentimentos em alegorias... simples e divino... claro e desconhecido... inexato e nem por isso impreciso... é ver o samba de mãos dadas com a vida...

mais uma cidade... meio invisível...

DUBIEDADE

Reflexões sobre Parati

Lembro da primeira vez que te vi. Uma noite antes da véspera de um ano novo, suas ruas de pedras cheias de quedas, a água do mar invadindo as vias como se a mostrar que apesar de nuas, aquelas grandes e pesadas pedras, seriam para sempre suas. O encontro foi breve, uma noite em um bar para aguardar o nascer do sol e com ele a travessia de barco para o destino originário. Uma praia selvagem escondida entre as suas encostas, distante do seu clima do passado. Neste mesma oportunidade, na volta da praia paradisíaca, um dia de passeio por suas ruas estreitas, lotadas de transeuntes, todos a andarem a esmo pelos labirintos que te formam, parecendo não notarem que é justamente a história que exala de sua arquitetura é que traz a graça do mistério do achado que te consome.

Depois disso, nunca mais te vi. Li e reli notícias em jornais, fotos de amigos que a visitaram e mantinham em suas próprias memórias as histórias que os marcaram. Sempre que me defrontava com estas notícias a vontade de vê-la novamente era latente e somente crescia. Quando tu foste escolhida para ser palco da literatura – paixão que marca a minha infância e define a quadratura do passo e compasso que sinto quando o assunto é escrita e leitura – aquela mera vontade, acabou se tornando desejo, mais forte, um esboço que além da vontade trouxe o medo, racionalmente inexplicável, mas à altura da expectativa da minha saciedade.

Surgiu a nova oportunidade. No início, nem dei muita atenção, como se a tentar não dar vazão à emoção e à conseqüente inexatidão quando os desejos estão prestes a se realizar. E assim, sem muito planejar, ao chegar, a chuva veio me recepcionar.

Percebi que se a água do mar não mais invade as suas ruas – fruto do trabalho humano – a chuva não deixa de dar o seu recado molhado dando a vastidão do escorregar àqueles que percorrem sua superfície sem nem notar os teus caprichos. Superfície formada por pedras disformes, duras, pesadas e com a cara do passado, que como conta a história, foram colocadas pelas pequenas mãos dos filhos dos escravos, o que me torna clara as irregularidades das suas formas, pois carregam o sofrimento e a subjugação de outrora.

Para mim, a sensação de escorregamento é para mostrar que todos – grandes, pequenos, homens, mulheres, brancos, negros, moradores, viajantes – estão sujeitos à queda do mesmo jeito. Puro resultado da fragilidade da infância aviltada, que encontra assim um meio de soar o grito de inconformidade ao fazer todos os que ali passam, terem que prestar atenção ao seu traçado, cheio de medo e coragem. O primeiro passo é quase sempre desavisado, o pé vai de encontro sem cuidado e somente ao perceber a possibilidade da queda, é que os olhos olham para baixo e fitam tentando encontrar um jeito de andar sem o perigo, buscando a estabilidade que não existe. E aí, o recado já está dado, é como se todas as pequenas mãos que um dia foram responsáveis por aqueles desenhos encontrassem um breve momento de escuta, de justiça, de aconchego.


Nos dias que se seguiram, as belezas naturais me afastaram das tuas entranhas, uma praia selvagem ao sul com cachoeira à parte e um passeio de barco pela tua baía, me fizeram ver-te apenas no escuro da noite, andando perdida pelas suas ruas, como se a procurar o que eu nem mesmo conhecia... Mas foi no terceiro dia que eu tomei coragem e sai à luz do dia a te desbravar, como um bandeirante na paisagem desconhecida, pressentindo o cheiro da vida e a olhar com curiosidade e expectativa tudo de novo que diante de mim surgia. Foi um ritual mergulhar na sua paisagem para dela sentir a tua essência, tentar te definir, encontrar alguma razão para esta tua aparência dissimulada e inesperada de menina e senhora, como se o tempo para ti fosse mero acaso, incorporado ao mar tranqüilo que abriga teus barcos no cais do porto, todos parados.

Os nomes neles inscritos me deram a idéia do infinito que abriga a tua identidade. Banzai, Sétimo Céu, Orpheu, Ponta Grossa, Maria Maria, Nativo, Corina, Albatroz, Caminante, Terra à Vista, Sonho Meu, Estrela da Manhã, Antígona, Sete Mares, São Benedito, Rei Cigano e o que para mim restou mais claro e enigmático – Sem Destino – como a mostrar que aquela minha vontade de defini-la era mesmo apenas uma ilusão sem porto de chegada, um desatino.

O canal que te corta, com as pontes a ligar as duas bordas e os barcos a transitarem sem parar nas tuas águas é como uma veia a pulsar teu sangue de um órgão para o outro para levar a vida aonde ainda não se tem nada além do lodo. Lembrança de mangue, simulacro de lama que mostra a origem da terra que te sustenta e dá forma.

Andar pelas tuas sinuosas ruas, dar de cara com a Praça da Matriz, bonita e imponente com os casarões gravados com os símbolos estranhos que não compreendo, mas que me mostra a razão do teu apreço, figuras coloridas a enfeitar a paisagem do recomeço. A chuva fina intermitente me dá a sensação eterna do escorregamento e me lembro das crianças. Elas não me saem do pensamento.

Olho para a porta da Igreja da Nossa Senhora dos Remédios e nela entro, quando avisto o seu interior, a surpresa me invade e as lágrimas rolam na face. Simplesmente, não entendo. As cores são tão estranhas, tão diferentes que combinam com a Ave Maria que soa lá dentro. Azul turquesa, amarelo ovo e o rosa salmão das flores de plástico espalhadas pelo salão. Bonecas de crianças a imitar anjos, de todas as cores, loiros, morenos, negros e ruivos, a formarem arcos em volta do altar. Anjos crianças a brincar. É como se os filhos dos cativos que haviam feito o calçamento, tivessem naquele momento se transformado e lá estavam sorridentes, esquecidos da sua dor, da sua imaginária corrente e eram símbolos da pureza latente, sempre presente na agonia, não importa a sua patente.

Saio emocionada e ainda sem entender direito a experiência do teu beijo vejo outra igreja e decido nesta também entrar para sentir novamente o seu toque no meu coração. Esta é a Igreja da Nossa Senhora do Rosário, dizem que era a igreja dos escravos. Lá é tudo mesmo pequeno, diminuto, como se a tortura e o preconceito estivessem escarrados nas pedras das paredes. O amarelo também está presente, porém mais fraco. A impressão de luz ausente, do grito paralisado e as imagens que lá estão, são ícones da perfeita incompreensão da história da escravidão, memória que ainda não encontrou forma para ser tratada com acerto e precisão neste país tão ambíguo e sem direção.

Sentir o ar que te rodeia é respirar profundamente o peso das histórias vividas, o marco das vidas sofridas, o indício da riqueza usurpada, o símbolo perfeito do país dividido entre o que foi e o que o ampara, a confusão da sua própria essência de valente e ausente, altivo e doente, corajoso e impotente.

No Largo do Rosário, me sento perto de uma árvore e o fim abrupto do calçamento, a dar margem para o canal, mostra mais uma vez como os seus limites são surpreendentes, inesperados e emolduram de forma perfeita a fotografia da imagem de um cartão postal. Uma harpa soa ao longe e a música dá mais vida ao lugar que cheio de histórias, vidas e passado mostra seu cansaço e a disposição de descansar. Deixar de ser imagem parada para dar vida àqueles que buscam na sua beleza a inspiração para suas vidas. Pessoas que como eu, sedentas de identidade e referências, no fundo não vêem conhecer as tuas histórias, mas compreender as suas próprias memórias, do beijo mal fadado, do hálito amargo, da dor do abandono inexplicado e da necessidade de compreensão do olhar solitário.

Do Largo do Rosário não foi fácil me afastar. O seu clima de verdade e aconchego conquistou a vontade de me encontrar, mas um chamado externo me fez voltar às tuas ruas. Meio a vagar, sem saber que direção tomar, andar e olhar, prestar atenção nos nomes, nas casas, nas cores, nas árvores e claro, nas pedras a pisar.

Durante algum tempo, ainda permaneci a caminhar. Mas já havia me perdido definitivamente, não havia meio de me encontrar em ti. A chuva voltou forte, quase um dilúvio e me escondi em um café. O momento havia passado e eu sabia que ele não voltaria mais. Não naquele dia, naquela frente fria. Talvez em outra via, no futuro da dureza da sua impaciente nostalgia.

Foi aí que entendi o teu recado. Era o que tu tentavas me dizer de bom grado e eu, surda e ensimesmada, me neguei a ouvir, sem nenhum afago. Tu não poderias me dar a resposta do encontro, pois isso significaria a abstinência do abandono do meu corpo para as suas ruas, a incontinência do desespero da minha tristeza a desaguar nas tuas águas paradas e cruas. Compreendi então que a tua mensagem de dubiedade, de indefinição de essência é a tua maior riqueza. Era ela que me dava a certeza da inexistência de clareza e assim da certeza da sua eloqüência. Querida menina Parati, te agradeço por sentir o seu hálito. A tua voz e beleza irão ecoar nas minhas lembranças exatamente com a dubiedade que me ensinastes a sentir, velha dama, eterna senhora para mim.

Alegria

ALEGRIA

Hoje só quero alegria. Não quero saber de tristezas. Deixe-as de lado, embaixo ou em qualquer outro canto. Hoje estas lágrimas e esse aperto não me encantam. Prefiro os dentes brancos, amarelos e sinceros a estampar na face o enlace da vida com o manto da simples euforia, sem pranto.

Por ser um dia feliz, até a chuva se emendou e deixou o sol a florir como se a possibilitar que a sua luz pudesse filtrar raios multicoloridos, azuis, amarelos, roxos, todos muitos vivos. As pequenas plantas verdes ao redor das árvores também parecem matar a sede com a água que desaba do céu. É a chuva que deixa a cidade molhada e a alegria bem instalada.

Mas para ter chuva é preciso que caiam as lágrimas. É mesmo, pensei desarvorada, mas não precisam ser lágrimas de tristeza, também se chora de alegria, lembrei-me naquela noite fria. Foi por isso que sem nenhuma nostalgia deixei que as lágrimas rolassem na minha face para a terra seca da magia.

Foi só aí que entendi que para se ter alegria é preciso chuva, para se ter chuva é preciso água e para se ter água é preciso lágrima e para ser ter lágrima é preciso alegria. Era uma ciranda que rimava sem nenhuma idiossincrasia. Ciranda de palavras redondas, fartas, repletas de mágoas vivas.

Percebi que a alegria, assim como a tristeza era apenas uma face da sua nuvem fria e deixei que ela ficasse soando solta sem nenhuma pressão ou necessidade. A alegria teria que ser natural pensei com a voz da monotonia. Mas não me prendi a isso, afinal para se ter alegria é preciso ser livre, lembrei sem certeza ou sabedoria, apenas com a ponta do cabelo enrolado nas mãos, como fazia quando ainda era criança. Era só isso que eu sabia.

terça-feira, abril 18, 2006

Mais uma viagem... mais um texto...

Reflexões sobre o Belém - Delicadeza


Senti o teu cheiro fresco ao andar nas tuas ruas entre cabisbaixa e altiva, aflita para não perder nenhuma das tuas indeterminadas quadraturas. Isso me preencheu de forma tão repleta que ainda não sei se me perdi para sempre ou se foi apenas um simples alerta. Reconheci nas tuas esquinas as mesmas quinas da minha memória universitária quando em ti estive exatos treze anos atrás, lembrança perdida e embaçada em meio a minha vontade libertária de compreender a tua história e o teu legado, ainda sem muita memória no meu passado.

A viagem para em ti chegar desta vez foi diferente. Ao invés das 44 horas por terra, foram apenas quatro nas asas do avião dormente. A rapidez de riscar o céu e adentrar sem aviso no norte me mostrou que em ti estar novamente – sem nenhuma programação – é mesmo pura sorte.

Na madrugada silenciosa, percorri suas ruas para encontrar abrigo. Imediatamente reconheci o teu aconchego, meu já eterno conhecido. A primeira noite foi de descanso manso a trazer para a memória todas as iguarias, festas e danças que me alegraram quando da primeira vez invadi o teu cenário.

Ao avistar a terra que te cerca no cais das docas, espaço da cultura e da arte, senti a tua inocência meio torta. Assim como as plantas de mandingas espalhadas pelas tuas ruas com nomes que indicam a atração que vigora nua. Chega-te a mim, vai-e-volta, carrapatinho, chora no meu pé e a que achei mais meiga e sincera, faz querer que não me quer, me mostraram como a selva está em ti presente, em cada esquina, cada rua, apenas com as plantas que dão o verde do seu ser sem estar aparente.

Há um certo frescor que guia o desejo do odor e das cores que os teus temperos anunciam. Quase como uma lembrança não vivida das recordações das especiarias das Índias, memória inexistente que me cativa como uma carícia e que me prende sem saída à minha imaginação sempre furtiva.

A chuva a cair, vez ou outra, mostrou a quentura do teu inverno. O céu sereno e límpido entre o escuro e o aflito precipitou suas lágrimas quando o teu calor o cercou, num ritual sem nenhum grito. Leve e sincera, inoperante e eterna a abraçar longamente meu corpo com o vento que não parou de soprar apesar do calor em nada aliviar.

No final do primeiro dia, a ânsia de te reencontrar me fez andar a esmo, sem indicações ou conselhos, ficando apenas com o meu olhar, preso entre os meus eternos tropeços. Avistei onde o baixo ventre em ti mora. Vielas quase desertas perto do cais com apenas algumas mulheres nas portas entreabertas, quase todas a escapar uma música estridente e indiscreta.Percebi que este lugar é parecido em todas as cidades, têm o ar do profano a lembrar o prazer instantâneo quando na verdade mostram apenas desejos perdidos e aflitos entre a lassidão do olhar e o beijo para sempre proibido.

Pude perceber que o descanso é em ti tão festejado e cultuado que as redes aqui possuem seu próprio supermercado. Redes que balançam as vontades daqueles que nos barcos se demoram nos afazeres sem nem mesmo saberem muito bem os seus próprios quereres.

No segundo dia, a chuva apareceu menos e talvez por isso o calor foi mais forte. A leitura do livro que me cativou me fez perceber o quanto a estada em ti é sempre forte. Da primeira vez, conheci animais, rios e desejos intermitentes e desta reconheci em ti o que estava todo o tempo à minha frente. O meu desejo irrealizado de perceber a tua delicadeza como marca indelével de cidade só foi perceptível quando em ti reencontrei a felicidade. Esta é a sua marca quase inaparente. A delicadeza de transformar as vontades e os quereres dos que em ti chegam naquilo que para sempre foram os seus desejos uniformes e ainda inaparentes.

A noite do segundo dia ainda não saiu de dentro de mim. Não a compreendi muito bem e por isso mesmo a guardei entre os recantos escondidos do meu coração como um tesouro encontrado e ainda não aberto. Percorri o caminho do cais até a berço do teu nascimento. Reconheci o modelo do forte a esperar a tua defesa, sempre contando com a própria sorte. O que realmente me causou encantamento foi avistar as onze janelas da casa perdida entre teus tormentos. Iluminada e enredada na tua sincera e pálida aquarela daquele momento. Adentrei nas suas paredes de história e inaugurei a alegria de avistar a tua baía sem nenhum corte, entre a iluminação perfeita e o borbulhar das águas sagradas. Foi como mergulhar sem salva vidas num mar de almas.

Ainda não me recuperei do afogamento. Sinto-me nadando eternamente naquelas águas e o que me prende é exatamente a tua delicadeza que me afaga sem nenhum lamento. Mesmo tendo entrando novamente no avião dormente. Mesmo tendo regressado para a minha terra com ares de ausente. Sinto o meu corpo se debater naquela baía. Sem corte ou morte anunciada. Apenas com a tua delicada delicadeza a me mostrar como morada. Belém, tu és como um amor para sempre perdido e encantado. Enamorado e incompleto. Guardado e secreto. Delicado e indiscreto. A insinuar no meu coração a dança do encontro eterno. Do que só reaparece a toda hora exatamente por parecer para sempre perdido, escondido nas entranhas dos meus desejos, para ti, sempre calados e ainda assim furtivos.

segunda-feira, abril 17, 2006

Um conto para variar...

CASAMENTO

Ainda não sei bem o que sinto. Não sei se é desejo reprimido ou raiva ressentida do teu olhar míope e sem vida. Contento-me com o fato de não entender nada e assim permanecer equilibrada para sentir as ondas e as marolas da virada. Mas o que não aceito é a tua incapacidade de vislumbrar o erro. Sei também que isso é apego. Ressinto e emendo. Sinto-me vazia do medo. Ele que sempre me visitava por longas noites e dias, parece ter viajado para terras distantes, sem data certa de retornar à minha vida. Ficar sem ele dói. Mas é uma dor estranha, quase uma rede plana. Com ele se foi também o sono. As noites parecem um eterno desengano. Esta especialmente chorou muito. A água e o vento foram suas constantes nuances.

Mas o pior é que chove dentro de mim. Uma chuva rala e fina. Muita fria e vazia, a trazer para minha infinita nostalgia a falta de tudo que me habita. O meu caminhar solitário, a minha incompreensão do teu ideário, a minha incapacidade de amar sem itinerário. Resta somente a certeza de não esconder novamente os esqueletos no armário, para que eles não apodreçam e possam dançar incansavelmente nas noites do meu aquário. Já os guardei por muito tempo. Estão ainda empoeirados e sem vida. Quando os olho, me lembro da primeira vez que os escondi, longe do meu sentir inodoro. Era uma noite escura, mas sem chuva. A lua brilhava alta e ao dormir senti que a dor da morte que em mim se ausentava me era insuportável. Levantei-me, a tirei de dentro de mim e a coloquei no fundo do armário, atrás de todas as roupas jogadas, como se assim pudesse esconder aquilo que em mim se acentuava. Era a dor e a morte, ambas entre si casadas.

Se esconder um esqueleto já é complicado, imagine um casamento estragado. Arrancá-lo do fundo do poço em que ele se enfiou foi como entrar em um trem desgovernado a transitar entre o futuro e o passado. Primeiro fiz questão de me esquecer daquele estado. Depois desta noite da lua alta, passei anos dormindo como se nada houvesse no armário. Aí recebi a primeira mensagem, muito direta e clara, limpe o que te liberta. No início não entendi, mas de repente, num lampejo me veio clara a necessidade do desapego daquela matéria amorfa e inquieta.

Coloquei meu braço no escuro do móvel e somente com o tato comecei a procurar o casal disforme. Quando os encontrei, percebi que ambos estavam necrosados e sem nome. Mas não os consegui tirar imediatamente. Havia algo neles que os prendia àquele ambiente seco e sem dente. Foi quase uma luta arrancá-los da escuridão, mas quando finalmente eles desgrudaram, percebi que a dor que um dia ali habitara, já inexistia. A morte a levou, como numa dança vazia, a seduzir aquela perda para sua eterna moradia.

Foi somente neste momento que percebi o que tinha acontecido. Meu vício havia morrido, o vício da dor, do sentir vazio e sem frescor a emendar à minha amplidão e necessidade de torpor. E foi com a dor que o medo também se foi. Hoje restou somente o desencanto a chorar no meu coração, como a chuva lá fora, na escuridão sem forma, a molhar indefinidamente os desejos na plataforma desenhada apenas com a espera do nada junto com as mãos vazias e emendada. Sei que assim como a dor, um dia o desencanto se ausenta, mas seja como for, quando isso acontecer, talvez eu nem esteja mais na minha existência, posso me casar com a morte, se ela assim me orienta.

domingo, abril 16, 2006

como nem só de poesia é feita a vida... instântaneos sobre o documentário do mv bill e seu desenrolar na mídia

Não gosto de assistir o Fantástico. Talvez porque o seu nome não me pareça nada com o seu conteúdo. Talvez até porque pareça demais. Poderia dizer que é por razões exclusivamente ideológicas. Mas não estaria sendo totalmente sincera pois consumo outros produtos da mídia global. É verdade que sem muito entusiasmo. Mas ao menos vejo. Com o Fantástico nem isso.

Penso que a minha maior cisma com o programa seja exatamente o fato dele me lembrar de forma implacável a depressão dominical. Aquela musiquinha (nem sei se continua a mesma) povoa a minha memória como o aviso inexorável do fim do final de semana. Repetitivo e banal assim. Falo isso para explicar porque não vi o documentário do MV Bill quando ele passou neste programa. Filme que trata da relação de jovens - procedentes de periferias de todo o país - com o trabalho no mundo do tráfico de drogas. Dezesseis jovens. Hoje apenas um continua vivo. E preso.

Me interesso pelo assunto. Às vezes até me assusto por pensar que pode ser um interesse mórbido. Olhando bem, percebo que este interesse provém da minha necessidade de minimante compreender uma realidade que além de não conhecer propriamente não controlo e apenas sinto que me engole. É certo que não me engole fisicamente como o faz como outras pessoas, como os jovens mostrados no documentário, mas engole a minha crença e muitas vezes chega até a abalar a minha fé.

Acabei vendo parte do documentário ao ser surpreendida pela sua reapresentação numa terça à noite. Fui para a cama e não conseguia dormir. Resolvi ligar a televisão. Na verdade estava à procura de algo leve que pudesse me ajudar a embalar o sono. Mas acabei me deparando com o Falcão (nome do documentário). Peguei no meio. Do que eu vi, dois momentos me marcaram e me fizeram refletir. O primeiro foi quando um dos jovens dá o prazo para "mudar" de vida - leia-se sair do tráfico e procurar um emprego "direito". Seria ao completar dezoito anos. Percebo que a sua fala têm duas nuances interessantes, ele fala da forma dele ganhar a vida quase como se fosse um vício, só que a segunda-feira do regime dele é a idade.
E por ser a idade detentora deste limite para a mudança, penso que ele também acredita como infelizmente o fazem muitas pessoas na nossa sociedade que os "de menor" não cumprem pena e não são responsabilizados pelos seus atos. Daí para ele ser importante operar a "mudança" quando passar a responder pelos seus atos como adulto. Ledo engano. Talvez ele desconheça que a "medida" dada ao adolescente é na prática muito mais cruel do que a destinada aos adultos.

Outro momento do filme que me impactou for ver a brincadeira de meninos - aparentemente na idade de doze à quatroze anos - ao simularem a execução de um delator. O tom de realidade e a crueza das imagens quase iguais aos dos filmes que carregam o modo dogma de filmagem me mostrou o quanto o repertório do lúdico é feito com o que de real as crianças lidam no seu dia-a-dia. Do mesmo jeito que eles poderiam estar brincando de roda, lá estavam todos representando fatos que se porventura não presenciaram diretamente, já ouviram falar ou conhecem alguém que participou deles de alguma forma. O final desta cena é igualmente impactante. Por detrás da simulação ouvem-se tiros de verdade que segundo uma voz que aparece no filme diz ser de uma execução real que estava acontecendo simultaneamente àquela brincadeira.

Depois disso acompanhei as manifestações críticas sobre o documentário. Gostei muito do artigo escrito pelo Férrez. E também gostei do fato do livro ter sido lançado na Daslu. Incongruente não??? Acho que sim. Mas também acho que precisamos parar de querer ditar regras únicas. Ambos são representantes desta realidade. Importante o documentário ter passado no Fantástico. Certamente muitas pessoas que não conhecem esta realidade - e infelizmente são muitas no nosso país - provavelmente não veriam se o filme tivesse passado em outro programa ou outra rede de tv.

Muito interessante todas as críticas feitas pelo Férrez quando ele diz que a periferia não é só violência e tráfico. É também resistência, cultura, sarau e literatura. Me lembra até uma música que gosto muito do grupo Záfrica que diz que também dá para curtir na periferia.

Acredito que o ideal é que as pessoas que não viveram e não vivem esta realidade da periferia possam situar o seu campo de opinões filosóficas e acadêmicas no campo limitado que eles realmente pertencem. Como um olhar de fora. Que não é nem melhor nem pior mas certamente diferente. Aceitar esta limitação é importante para que possamos parar de "falar em nome de" como se as pessoas não tivessem capacidade de fazerem as suas escolhas. Podemos até não concordar com elas mas reconhecer a autonomia de alguém de dar a sua própria opinião é o primeiro passo para quebrar a invisibilidade.

sexta-feira, abril 14, 2006

Ato de Viagem

Voltei ao lar,
Com fome de ar,
Saudade de vento,
E curiosidade de simplesmente estar.

Depois de avistar a lua minguando,
Com halo de luz ao redor,
No repleto céu azul,
Estrelas unindo pontos,
Meros esboços tontos,
Desenhados pelo eterno balançar da estrada,
A desfilar como infinita reta de chegada,
Foi à sensação de regresso,
Que realmente marcou meu recesso.

A água tirou a poeira,
A comida, a sensação de ausência,
E a cama trouxe o inesperado descansar,
Verdadeira dormência.

Depois das saudades mortas,
Nem sei, se bem postas,
Percebo que é o eterno deslocamento,
Incompreensão do espaço em simples movimento,
Que me dá a impressão de sempre chegar,
Mesmo quando já se está para sair.



Reparo que o que me prende,
Não é um simples lugar,
Mas este ponto inatingível.
Entre o aterrissar e ir,
Que torna confuso,
Tanto o adentrar quanto o partir,
E faz sempre da estrada,
A estada permanente do meu bem estar,
Indefinida e latente, impossível e ausente,
Pois é ela que corporifica,
O simples ato de viajar,
Ser e estar,
Sem importar aonde chegar,
Contanto que se leve o em ti gostar...

Amor Novo

Tenho um amor novo em folha. Quando ele nasceu olhei cabisbaixa com medo de já conhecê-lo. Vi seus olhos brilhando e seu coração para lá de vermelho... Percebi que ele era novo mesmo. Novinho. Prestes a ser inaugurado.

Este meu amor é meio tímido. Talvez porque apesar de novo, traga em si marcas do passado. Marca de dores. Marca de mágoas. Mas é quase como uma pinta de nascença ou uma perna ligeiramente manca. O tipo de marca que você só percebe se repara muito. Afinal, ele tem o frescor e o ardor dos recém-nascidos. E ele é tão fleiz. Ao contrário dos seus irmãos de alma que geralmente nascem chorando meio que pressentindo seu pretenso sofrimento. Esse meu amor nasceu sorrindo. Surpreendeu a todos. Especialmente eu. Meio coruja, quase me sentindo sua mãe. Mas ele logo foi me colocando no meu lugar, disse que a sua felicidade não tinha nada a ver comigo. Que simplesmente era feliz. Simples assim. Sem nenhuma explicação ou mistério.

O meu amor novo em folha me ensina - a cada dia - como alimentá-lo. Às vezes precisa das minhas lágrimas. Mas são dias raros. Geralmente precisa das minhas flores. Flores que ofereço ao menos três vezes por semana. Tem semanas que elas aparecem na minha porta todos os dias. Quando isso acontece, percebo que deve ser por alguma comemoração especial. E simplesmente sorrio. Simples assim. Apenas como uma forma de agradecimento por ele existir.

para começar o papo...

Sempre adorei escrever. Na infância tinha um pequeno caderno onde anotava meus primeiros versos. Uma das minhas maiores inspirações nesta época foi o cometa halley. Escrevi tanto sobre ele, o idealizei, me preparei para conhecê-lo que a minha frustação foi enorme quando ele apareceu tímido... quase sumido na sua cauda meio suja e inaparente...

Depois passei muito tempo sem conseguir escrever mais que alguns pequenos trechos de textos... poemas pequenos... mas a escrita voltou assim como foi... no momento em que me defrontei com uma imagem que me paralisou... o rio são francisco... portanto aí vai o texto de quando reiniciei a escrever...

" Reflexões sobre o Rio São Francisco

Agora que nos afastamos definitivamente dele, me sinto mais inteira para falar. E para isso é preciso contar desde o início. Há um ano e meio atrás me invadiu a vontade de fazer a viagem pelo Rio São Francisco, conhecer desde a sua nascente em Minas Gerais até a sua foz em Alagoas, passando pela Bahia e Pernambuco. Nunca tinha lido nada a respeito e comecei a fazer pesquisas tímidas e montar o roteiro na minha mente. Era uma mistura de desejo, ensaio, curiosidade, vontade, sensação de encontrar verdades, tantos sentimentos misturados e confusos que impediam uma definição mais apropriada do que "chamamento".

Viagem sempre adiada pelo trabalho, naquele momento cada vez mais tenso junto aos meninos e meninas com fome, não só de amor e de justiça, mas fome de barriga vazia, fome de palavras amigas, fome de saber quem são e para que servem as suas vidas. Com tanta fome, a fome de conhecer o Velho Chico ficou guardada, mas nunca esquecida, apenas suspensa, um pouco congelada.

Afastei-me daquela fome, ela continua no meu caminho, eu bem o sei, mas agora meu trabalho é dar de comer de outras formas, outros jeitos.

De repente, a oportunidade de ouro, dez dias de férias com uma querida amiga, incerteza de planos, até que me veio claro, ele, de novo, me chamando, aquele mesmo sentimento sem forma, sem identidade... Tudo muito rápido. Dois dias de programações, passagens compradas, de certeza tínhamos apenas duas coisas: o ponto de partida - a cidade de Pirapora – MG no dia 10/12/2005 e a volta marcada de Salvador em 22/12/2005. O resto era apenas nuances, idéias, vontades, desejos.



Primeiro veio a cidade invisível e chuvosa - Pirapora - MG, onde só se via nas ruas homens de todas as idades, crianças e mulheres mais velhas, não sei se pela própria idade, ou pela vida sofrida de mulheres de todas as cidades, aparentemente nesta mais dolorida e de coragem. Ônibus sem horários certos de partida, e onde não se compra passagem antecipada, é realmente como se fosse no meio do nada.

Pergunto sobre navegação no rio, a resposta é curta. Não existe mais, faz tempo, nem sei o quanto de verdade, disseram-me, sem nenhuma vontade, logo que lá cheguei.

Meu primeiro encontro com ele, foi nesta cidade chuvosa, quase escurecendo, sua água barrenta fluindo sem cessar, parecendo até não se importar com a chuva, com a sensação de esquecimento e abandono que a visão me causa. Esquecimento de um grande valente que percorre quatro estado brasileiros e parece estar ficando invisível, indivisível. Com a noite caída, o azul do céu pareceu estar refletido na água do rio, que continuou a fluir sem cessar, correr, sem nem parecer se preocupar.

Nesta cidade, o rio barrento mostrou a sua valentia nas corredeiras e nós mostramos as nossas atravessando uma ponte esburacada apenas para vê-lo do outro lado, outro ângulo. Cidade das carrancas, onde os homens fazem da arte de talhar a madeira - profissão de artesão – ao desenharem réplicas das imagens que antes eram usadas pelas embarcações para afastar os maus espíritos. Homens que ao talhar as caras feias e dentes grandes, exprimem terem a vontade de traçarem as suas próprias vidas, seus próprios destinos, desejam recuperar o tempo já perdido, quando as carrancas eram efetivamente utilizadas no rio e não simplesmente consideradas apenas como peça de artesanato.

Sem hora certa para partir, demoramos um dia inteiro para ir para Bom Jesus da Lapa -BA, terceira cidade do roteiro originário, pois Januária-MG foi descartada pela chuva que não cessava.



Vinte e quatro horas depois, Bom Jesus da Lapa, mistura de fé pura com o total descomprometimento ambiental. A gruta onde reside a figura milagrosa do Bom Jesus emociona e nos faz crer na fé do homem simples que leva o retrato, cópia do membro curado e atribui tudo ao Bom Jesus, mas o rio colado à gruta grita pelo descaso, com muito lixo, bem ao lado da fonte de São João Batista que possui a inscrição: "Uma voz clama pelo deserto, preparai o caminho do senhor e endireitai suas veredas".

Como ali era o último lugar em que iríamos vê-lo, fomos à sua margem, sentamos, e ficamos contemplando. De repente, uma senhora de um lado a lavar a roupa, do outro três homens pescando e cantando cantigas que pareciam candomblé, ou simples sincretismo, não sei. Músicas bonitas e que combinavam perfeitamente com a paisagem, o rio tranqüilo a fluir como se dizesse estar feliz com a música, com os acompanhantes, com o vento e com as nuvens. Assim, de tão perto, a impressão é que o rio é mesmo um menino sonolento que depois de tanto brincar, de tanto fluir e de tanto sonhar, apenas busca o aconchego daqueles que dele se aproximam sem interesse. Assim como nós, apenas para o olhar.

Como despedida, um passeio de barco até uma ilha próxima, onde os que lá vivem migram conforme a cheia ou vazante do rio. Naquele dia, a cheia tinha levado embora metade da plantação dos moradores. Vegetações lindas, cheias de vida, várias flores diferentes, pequeninas e com cores próprias. Parecia outro mundo: junto à gruta o rio humilhado, sujo, desprotegido e alguns minutos dali, ele exuberante, como a exibir a sua ilha verde e cheia de vida.

Durante o passeio de barco, observando atentamente as suas águas, suas margens, as casas solitárias com as canoas em frente, invadiu-me um sentimento misto de alegria e agonia. Alegria por estar li, desfrutar daquela paisagem sem igual, que até mesmo as palavras ficam poucas para explicar e não é por causa da beleza e sim pela força de resistência do rio e de seus moradores e agonia por perceber o estado de abandono e esquecimento dos dois.



O rio parecendo um menino tentando ser protegido pela vegetação que o abraça e o embala, mas não impede a sua degradação. Visão que mostra a miséria do nosso país, que não é só miséria de fome, é miséria de respeito, miséria de conhecimento, miséria que deprime e que parece não ter nome nem resposta. Miséria pura de dor pungente por perceber que o abandono não é só o do rio, mas também da gente que ali está. Ambos maltratados, quase invisíveis, mas que permanecem de forma valente resistindo todas as agressões, todo o esquecimento que é a verdadeira causa da miséria do povo que acaba por contribuir com a miséria do rio, nele jogando todas as suas próprias sujeiras.

Fico a pensar e de repente, me vem uma idéia que parece foi suspirada por ele mesmo nos meus ouvidos. Ele diz que a única resposta é prosseguir apesar de todas as agressões, permanecer, resistir, com a beleza possível, com a poesia intraduzível e com a fome de justiça que talvez não seja deste mundo.

Querido Chico, agradeço por ter te conhecido, mesmo que pouco, muito me ensinastes. Fluir sem cessar, sem importar quanta sujeira te joguem, matar a sede e a fome daqueles que te agridem sem nem mesmo saber. Tu tens o meu amor e o meu respeito, mostrando sempre valentia, altivez, imponência e porque não beleza, já que apesar do barro, tu é que matas a fome. Não importa donde ela venha ou como ela seja, tu ofereces o prato cheio, sem perguntar, nem cobrar nada. Apenas chora, em alguns momentos, quando as tuas águas invadem plantações e casas, mas calma, querido rio, tu já mostraste a tua importância e magnitude. Não te preocupes, apenas segue fluindo, levando tua mensagem de fartura e saciedade aqueles que ainda procuram dentro de si o que os consome.

Agora, entendo porque somente à soja é permitido navegar em você agora. Pessoas só podem vê-lo, senti-lo assim, de forma furtiva e rápida, talvez para não serem contagiadas pela sua valentia e resistência e levá-las para as suas cidades, para os seus rios, para as suas próprias fomes, para as suas vidas.